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SÁBIO

Mas Dona Benta não ouviu. Não tirava os olhos das estrelas. Estranhando aquilo, os meninos foram se aproximando. E ficaram também a olhar para o céu, em procura do que estava prendendo a atenção da boa velha.
- Que é, vovó, que a senhora está vendo lá em cima? Eu não estou enxergando nada – disse Pedrinho.
Dona Benta não pôde deixar de rir-se. Pôs nele os olhos, puxou-o para o seu colo e falou:
- Não está vendo nada, meu filho? Então olha para o céu estrelado e não vê nada?
- Só vejo estrelinhas – murmurou o menino.
- E acha pouco, meu filho? Você vê uma metade do universo e acha pouco? Pois saiba que os astrônomos passam a vida inteira estudando as maravilhas que há nesse céu em que você só vê estrelinhas. É que eles sabem e você não sabe. Eles sabem ler o que está escrito no céu – e você nem desconfia que haja um milhão de coisas escritas no céu...
- Desconfio sim, vovó, mas fico nisso. Sou muito bobinho ainda.
- Bobinho como todos os grandes astrônomos na sua idade, meu filho. Os maiores sábios do mundo foram bobinhos como você, quando crianças – mas ficaram sábios com a idade, o estudo e a meditação.
Narizinho interrompeu o tricô para perguntar:
- Fala-se muito em sábio aqui neste sítio, mas eu não sei bem, o que é. Conte, vovó – e retomou o tricô.
Dona Benta, quando tinha de dar uma explicação difícil, tomava fôlego comprido, engolia em seco e às vezes até se assoprava resignadamente. Mas não falhava.
- Os sábios, menina, são os puxa-filas da humanidade. A humanidade é um rebanho imenso de carneiros tangidos pelos pastores, os quais metem a chibata nos que andam como eles pastores querem e tosam-lhes a lã e tiram-lhes o leite, e os vão tocando para onde convém a eles pastores. E isso é assim por causa da extrema ignorância ou estupidez dos carneiros. Mas entre os carneiros às vezes aparecem alguns de mais inteligência, os quais aprendem mil coisas, advinham outras, e depois ensinam à carneirada o que aprenderam – e desse modo vão botando um pouco de luz dentro da escuridão daquelas cabeças. São os sábios.
- E os pastores deixam, vovó, que esses sábios descarneirem a carneirada estúpida? – perguntou Pedrinho.
- Antigamente os pastores tudo faziam para manter a carneirada na doce paz da ignorância, e para isso perseguiam os sábios, matavam-nos, queimavam-nos em fogueiras – um horror, meu filho! Um dos maiores sábios do mundo foi Galileu, o inventor da luneta astronômica, graças à qual afirmou que a Terra girava em redor do Sol. Pois os pastores da época obrigaram esse carneiro sábio a engolir a sua ciência.
- Por quê, vovó?
- Porque a eles pastores convinha que a Terra fosse fixa e centro do universo, com tudo girando em redor dela.
- Mas por que queriam isso?
- Para não serem desmentidos, meu filho. Como os pastores sempre haviam afirmado que era assim, se os carneiros descobrissem que não era assim, eles pastores ficariam desmoralizados.
- Ficariam com caras de grandes burros, que é o que eles são – berrou Emília indignada.
Dona Benta suspirou.
- Ah, meus filhos, eu até nem gosto de pensar no que os sábios têm sofrido pelos séculos afora... Aquela coitadinha da Hipácia, por exemplo...
- Quem era ela, vovó? – quis saber a menina.
- Hipácia foi uma sábia grega nascida em Alexandria no ano 370. Não só muito culta, como de grande beleza. O pai educou-a muito bem e depois mandou-a aperfeiçoar-se em Atenas, que era a Paris do mundo antigo. De volta a Alexandria, Hipácia abriu uma escola onde ensinava as grandes idéias de Sócrates e Platão. Tornou-se queridíssima do povo, sobre o qual derramava ondas de sabedoria. Pois sabe o que aconteceu com a coitada?
- Casou-se e... – ia dizendo a Emília, mas Narizinho tapou-lhe a boca. – Que foi, vovó?
- Mataram-na! Um grupo de capangas, instigados por um tal Bispo Cirilo, atacou-a na rua, matou-a e esquartejou-a .
Os quatro coraçõezinhos ali presentes pulsaram de indignação. Dona Benta continuou.
- E a Sócrates, que foi um dos maiores iluminadores da ignorância dos carneiros, os pastores da época obrigaram-no a beber cicuta, um veneno horrível. E Giordano Bruno? Ah, este foi queimado vivo numa fogueira, no ano 1600 – sabem por quê? Porque era um verdadeiro sábio e estava iluminando demais a escuridão dos carneiros.
- Queimado vivo! – repetiu Narizinho com cara de horror. – eu nem consigo imaginar o que isso possa ser. Outro dia queimei o dedo na chapa do fogão – e doeu tanto, tanto... Imagine-se agora uma fogueira queimando a gente inteira – a pele, os olhos, os nariz, as orelhas, as mãos, tudo, tudo... – e a menina tapou a cara como para não ver a cena.
Dona Benta deu um suspiro.
- Pois, minha filha, contam-se por centenas de milhares os mártires da fogueira, e quase sempre por isso: enxergar mais que os outros e ensinar aos ignorantes. Por felicidade minha, eu vivo neste nosso abençoado século; se eu vivesse na Idade Média, já estava assada numa boa fogueira – e vocês também, pelo crime de terem aprendido comigo muita coisa. Até Quindim ia para a fogueira como feiticeiro, se os pastores soubessem daquele passeio gramatical que ele fez com vocês.
- E o Burro Falante, vovó? – perguntou Pedrinho.
- Também ia para a fogueira, meu filho. O simples fato de o nosso bom burro falar, já seria considerado crime merecedor de uma dúzia de fogueiras.
- E eu? – indagou a boneca?
- Você tem dito tantas heresias, Emília, que eles a queimavam numa vela até ficar reduzida a carvão, e depois moíam esse carvão e o assopravam aos ventos, de medo que a poeirinha se juntasse e vivesse outra vez.
- E hoje, vovó? – quis saber Pedrinho. – Por que é que hoje não há mais fogueiras para os sábios?
- Porque apesar de todas as perseguições os sábios foram abrindo a cabeça dos carneiros, e os carneiros já não deixam que os pastores queimem os seus mestres de ciência. Mas mesmo assim volta e meia um sábio vai para o beleléu, destruído pelos pastores. Não os queimam vivos, é verdade, mas prendem-nos em cárceres e às vezes até os fuzilam. Ou então perseguem-nos de outras maneiras, tornado-lhes a vida difícil. Em todo caso, já melhoramos bastante, e prova temos aqui em nós mesmos: estamos vivos! (20:18-21)