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CARTA

1. O gênero "carta" não é literatura, é algo à margem da literatura... Porque literatura é uma atitude - é a nossa atitude diante desse monstro chamado Público, para o qual o respeito humano nos manda mentir com elegância, arte, pronomes no lugar e sem um só verbo que discorde do sujeito. O próprio gênero "memórias" é uma atitude: o memorando pinta-se ali como quer ser visto pelos pósteros - até Rousseau fez assim - até Casanova.
Mas cartas não...Carta é conversa com um amigo, é um duo - e é nos duos que está o mínimo de mentira humana. Ora, como da minha conversa escrita com Rangel se salvasse quase todas as cartas, tive ensejo, um dia de lê-las - e sinceramente achei que constituíam uma "curiosidade editorial" de bom tamanho. E que teriam interesse para o público justamente porque ao escrevê-las nunca me passou pela mente que jamais fossem dadas a público. Mas vacilei. Dá-las ou não? Tão íntimo tudo aquilo. Tantas perversidadezinhas para com os amigos, tanta piada para cima do Nogueira - o companheiro que no fundo mais admirávamos... Além de que isso de cartas é sapato de defunto. Depois que o autor morre é que elas aparecem.
Pensei, pensei, pensei. Por fim, vá lá. Tenho sérias dúvidas sobre se estou ainda vivo - e se as cartas saírem com a minha revisão de semi-vivo, apresentar-se-ão podadas de muitas inconveniências que um semi-morto já não subscreve. (1:l7-18)
2. Por que usas etiquetas comigo? Tuas cartas vivem cheias de "faça o favor", "se não for incômodo", e mais fórmulas da humana hipocrisia. São tropeços. Quando te leio, vou dando topadas nisso. Faça como eu. Seja bruto, chucro, enxuto. (1:52)
3. ...De modo que essas três irredutíveis instituições humanas - o vizinhato, o cão e o namorado noturno - interpuseram-se como uma trindade de aço entre mim e a ciência do Paula Batista, e com tal prepotência que me vi forçado a afastar o poço da sabedoria e matar o tempo com uma quarta instituição humana: conversar por escrito. (1:72)
4. Apontas-me, como crime, a minha mistura do "você" com "tu" na mesma carta e às vezes no mesmo período. Bem sei que a Gramática sofre com isso, a coitadinha; mas me é muito mais cômodo, mais lépido, mais saído - e, portanto, sebo para a coitadinha. Às vezes o "tu" entra na frase que é uma beleza; outras é no "você" que está a beleza - e como sacrificar essas duas belezas só porque um Coruja, um Bento José de Oliveira, um Freire da Silva, um Epifanio e outros perobas "não querem"? Não fiscalizo gramaticalmente minhas frases em cartas. Língua de cartas é língua em mangas de camisa e pé-no-chão - como a falada. E, portanto, continuarei a misturar o tu com você como sempre fiz - e como não faz o Macuco. Juro que ele respeita essa regra da gramática como os judeus respeitavam as vestes sagradas do Sumo Sacerdote. Logo, o dever nosso é fazer o contrário.
(1:79-80)
5. Já notaste como é mais vivo o estilo das cartas, do que o de tudo quanto visa aparecer em livro ou jornal? Acho maravilhoso o prime saut das cartas. Eu queria ver em todos os teus livros o elance primesautier da última carta que me mandaste. A caraça do público, a "feição" do jornal, os moldes do editor, sempre antepostos aos nossos olhos quando "escrevemos para imprimir", acanham-nos a expressão, destroem-nos a alerteza do élan. Eu, por mim, só lia cartas e memórias como as do Casanova. (2:54)
6. Que idéia sinistra a tua, de publicarmos as minhas cartas! Seria dum grotesco supremo, porque cartas só interessam ao público quando são históricas ou quando oriundas de, ou relativas a, grandes personalidades. No nosso caso não há nada disso: não são históricas e nós não passamos de dois pulgões de roseira - eu, um pulgão publicado; você, um pulgão inédito. O interesse que achas nas tais cartas é o interesse da coruja pelas peninhas dos seus filhotes. Formam um álbum de instantâneos de nossa vida. Mas o público quer penas de pavão, plumas de avestruz ou aigrettes de garça: não quer peninhas de filhote de coruja. Todos iriam rir-se de nós, além de que estão cheias de maldadezinhas endereçadas a amigos e conhecidos, sobretudo por mim, que tenho a mania de arrasar tudo, a começar por mim mesmo. Não. Varra com a idéia. (2:198-199)
7. Fui mexer na minha tremenda papelada epistolar e tonteei. É coisa demais. É um mundo. Pus a Ruth separando aquilo e classificando por ordem de data - é o primeiro passo. O segundo será separar certas cartas, como as tuas, que são as mais numerosas; e como por milagre tenho aqui as minhas, estou vendo que desse passo vai sair coisa grossa e talvez muito interessante. Desconfio, Rangel, que essa nossa aturada correspondência vale alguma coisa. É o retrato fragmentário de duas vidas, de duas atitudes diante do mundo - e o panorama de toda uma época. Literatura, história e mais coisas. (2:351)
8. Heitor// Recebi a tua carta de 12, realização de um "projeto velho" e fico-lhe grato pelo te lembrares do exilado das Areias. Tem razão de ser a tua quizília pelo escrever cartas, veículo pequenino demais quando se tem muito a dizer e embaraçoso quando não há assunto. A carta é boa e fácil de se escrever quando há um negócio bem positivo a tratar e por isso o ideal delas me parece que são as cartas comerciais. Que gosto sentar-se à mesa sem vacilações, sem pensar, lançar no papel um bem caligrafado Am.º e Snr., para início de meio palmo de literatura sólida e sucinta! Infelizmente o destino não reserva para nós essa boa delícia... Mas vamos ao que serve. (3:100)