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CRIAÇÃO

1. Nós dois somos o inverso. Somos cracas eternamente grudadas ao pago natal. Somos cogumelos, chapéus-de-sapo, temos o aparelho de locomoção destituído de rodinhas amarelas - libras ou dólares. Somos ápteros. Pingüins! Nossas capacidades embotam-se na mesquinhez da introspeção e na sordidez tacanha de meiozinhos roceiros pífios, onde não há os caracteres fortes e sintéticos que o romance requer para não degenerar em teatrinho do João Minhoca; onde não há dramas - (como imaginar os Átridas em Areias); onde nada há que não seja choco. Desta Areias onde apodreço há três meses nem o gancho dum Shakespeare tirava sequer um título de drama.
Parece-me erro supor que o artista cria independentemente do meio. Meio pífio, artista pífio - obra d'arte pífia. Entre nós, só no Rio há ambiente para alguma arte - e porisso todos os que têm veia para lá acodem. Os que ficam no interior só dão de si água parada. Veja, Rangel - estamos nós dois condenados a ser água parada... Você casou; eu vou casar. Casamento: feixe de raízes que virão agravar ainda mais o nosso chapéu-de-sapismo. E, no entanto, nós temos talento, Rangel - sentimos isso, não? Ninguém sabe, ninguém percebe; talvez nunca desconfie disso o mundo - e no entanto temos talento! (1:176)
2. Vivo esperando a ocasião propícia - essa ilusão. Não há disso. Para quem de fato possui criatividade, todos os momentos são propícios. (1:177)
3. Ando com uma idéia. O Plínio Barreto insiste em que eu escreva um romance para a Revista e estou com idéia de um romance à Dumas ou Paulo de Kock, cheio de ação e diálogos, tudo tão violento que o leitor perca o fôlego. O público anda farto de psicologia e descritivo - a mania dos nossos romancistas atuais - e é a razão de deixá-los às moscas.
Vamos fazer uma coisa: destrinçar o segredo dos eternamente lidos. Depois seguiremos a maneira deles, mas sem nos afastarmos da observação, do real, do verismo que está em nossa essência. (2:127-128)
4. O fim visado num romance ou conto deve ser o máximo de impressão no leitor com o mínimo de meios. É nesse sentido que voga o meu barco. Progrido em "concentração", fujo sistematicamente à "diluição". Prefiro fabricar um martelo de pinga a um barril de garapa azeda. E se a ilusão me não transtorna o senso crítico, creio que estou com a verdade. Que verdade? A deduzida dos melhores capítulos das melhores obras dos melhores autores. Por que melhores autores? Porque mais intensa e duradouramente lidos. A Desforra ganharia se voltasse ao fogo para apertar o ponto. Ficaria metade em volume e o dobro em grau alcoólico.
A humanidade gosta de bebidas fortes - whiskey, rum, kümmel, vodka e mais "fogos líquidos". Já os xaropes e águas panadas, e mesmo a água pura, têm menos fregueses - e com eles ninguém se vicia.
Esta minha observação vai com todas as reservas. Ser assim no caso de aceitares como verdadeiro o meu critério de concentração. Porque em boa crítica todos os gêneros se equivalem, contanto que as obras sejam filhas do talento.
Ando a preparar um livro de contos - assinado Hélio Bruma - coisas antigas refeitas. A refusão limita-se a podas, desgalhes, descascamentos - sempre "des", isto é, concentração. E sinto que ganham com o desbaste. Em regra somos na mocidade extremamente excessivos, folhudos como certas árvores tão enfolhadas que não há ver nelas a beleza maior: o tronco e o engalhamento. (2:137-138)
5. O Presente da Loveling e o urso de Tolstoi são demonstrativos de que para bem dizer é mister escrever pouco e concentrado. A prolixidade é o grande mal. Antigamente eu "borrava" dez tiras e no último "a limpo" obtinha vinte. Hoje borro dez para obter cinco. Podo impiedosamente - e nunca me arrependo. Ontem li no Imparcial uma crítica do João Ribeiro que abunda nestas idéias. (2:140)
6. Quanto ao meu livro, espero completar aí uns quinze contos que me agradem; publico-os na Revista do Brasil e depois de impressos dou-lhes a forma definitiva. Só então arriscarei nos quinze contos os dois contos de réis que me custar a edição. Não tenho pressa nem entusiasmo. Já estou muito longe do assanhamento dos dezoito anos.
Se me seduz uma idéia, ponho-a em conto, mas sempre com muita preguiça. O gosto vem depois, na polidura do borrão, no acepilhamento, no envernizamento. O ato bestial de parir um monstrengo, informe, sujo de sangue e placentas, é o mesmo na arte e na vida feminina. O gosto da mãe começa depois de lavado e vestido o fedelho. (2:147)
7. Lá pelo fim do ano darei livro para o público. Contos. Inda hoje escrevi um. O Rapto. Fui a Campos do Jordão com o Macedo Soares e na estação de Pinda vi um aleijado num carrinho, enérgico, a ralhar com os filhos que o puxam. Senti uma coisa: aquele homem, apesar de aleijado, era o importante e rico da família, o que ganhava a subsistência de todos com as esmolas recebidas. Daí o seu tom mandão, apesar de viver sem pernas dentro do carrinho. Um conto formou-se em minha cabeça, e de volta despejei-o no papel, como quem despeja a bexiga.
Ando cheio de contos lá por dentro. Contos são bernes. A gente pega os germes aqui e ali, e eles ficam germinando, gestando-se em nossos misteriosos úteros subconscientes. Um dia, como o feto das mulheres aos nove meses, eles vêm à tona da consciência e anunciam-se: "Queremos sair!" E então escrevemos aquilo com a facilidade com que as fêmeas dão cria. Os contos fluem da pena para o papel como um "berne de tempo", bem esvurmado. O curioso é que quando produzo um conto, de forma nenhuma o tenho completo na cabeça; tenho lá dentro uma só coisa: a idéia central do conto. Tudo mais se forma no ato de escrever. A primeira frase que lanço determina as demais. N'O Rapto não havia nem rapto nem nada; só havia esta idéia central: um cego que justamente por ser cego era o único da família que ganhava dinheiro e tinha importância. (2:253-254)
8. Não concebo artista capaz de construir obra valiosa, se reside em cidade pequenina, marasmada. Só nos grandes centros há ambiente para a criatividade, uma excitação cerebral contínua, formada pelos mil estimulantes urbanos. Na roça o cérebro assenta, como líquido vascolejado posto a repousar. (7:20)
9. Há duas espécies de obras, a que é feita e a que sai de dentro da gente — que sai no momento próprio, com a naturalidade do feto a espirrar do útero materno depois de nove meses de sono. É sempre difícil e doloroso fazer uma obra; mas é facílimo e delicioso parir uma. O delicioso está no aliviar-nos de qualquer coisa que nos incomoda lá dentro — certas pressões.
Antes de mais nada, porém, meu caro Flávio, devo confessar-te que eu já morri. O que ainda anda cá pelo mundo é apenas a materialização ódica do Lobato morto. Quer que te conte como ele escrevia contos? Isso talvez te ajude no romance, esclarecendo a fisiologia estética. Lobato não fazia contos, paria-os.
Não escrevia deliberadamente; só quando a coisa vinha, quando a bolsa das águas rebentava e não havia remédio senão parir. Ele paria para aliviar-se de subitâneos engravidamentos — sobretudo os causados pela indignação. O seu livro mais interessante seria o em que contasse a obstetrícia da sua literatura.(...)
Estude o teu caso como um bom médico e veja se convém operar ou esperar que o útero o expila naturalmente.
Os engravidamentos do Lobato eram instantâneos. Há-os mais lentos. O que friso é a indispensabilidade do engravidamento e da chegada a termo. Estude-se, Flávio. Seja obstetrício. (12:50-55)
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Ver: CARTA 5 (2:54)
LINGUA 1 (1:248-249)