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EDUCAÇÃO

1. Recordando minha vida colegial vejo quão pouco os mestres contribuíram para a formação do meu espírito. No entanto, a Júlio Verne todo um mundo de coisas devo! E a Robinson? Falaram-me à imaginação, despertaram-me a curiosidade — e o resto se fez por si.
Júlio Verne levou-me a Humboldt, e depois à Geografia e às demais ciências físicas e sociais. Foi o aperitivo. Entreabriu-me as cortinas do mundo como coisa viva pitoresca, composta de paisagens e dramas. De posse dessa visão, e esporeada pela imaginativa, a inteligência "compreendeu e quis saber". Que menino, após a leitura de Keraban o Cabeçudo, não corre espontaneamente a abrir um atlas para ver onde fica o Bósforo?
A Inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia. A bagagem de Júlio Verne, amontoada na memória, faz nascer o desejo de estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato só quando já existe material concreto na memória. Mas pegar de uma pobre criança e pô-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermédio da imaginação, chega a ser criminoso. É no entanto o que se faz!... A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui? (7:8-9)
2. O Coronel Teodorico não concordava com o modo de Dona Benta tratar os meninos.
― A comadre dá muita liberdade para eles. Criança não é assim que a gente trata. Criança a gente doma, como os potros.
E era assim na casa dele. Havia castigos: puxões de orelha, cocres, chinelo ― e ficar sentado num canto ― e não ter sobremesa no jantar ― e não ir à cidade no domingo. Apesar de tudo isso, seus filhos não eram bem educados e não faziam progressos nos estudos.
Dona Benta respondeu:
― Isto de educar crianças é a arte mais delicada que existe. O mesmo que lidar com broto de roseira. Qualquer coisa errada que a gente faça para um broto, ele "sente" e fica marcado pelo resto da vida ― para bem ou para mal.
E Dona Benta foi além, a filosofar em termos muito acima da compreensão do coronel, tão acima que ele cochilou e dormiu.
Era sempre assim nas visitas do fazendeiro à sua comadre; quando a conversa se elevava um pouco, e Dona Benta entra a discorrer com a sua elevação de sempre, ele "tirava um corte."
As idéias de Dona Benta sobre educação eram muito especiais. Quem entrasse em sua cabeça assistiria ao jogo do seu pensamento. (É interessante o jogo de futebol do nosso pensamento. Um jogo que não se interrompe nunca ― só quando dormimos. Um solilóquio. Falamos como nós mesmos numa conversa mental que não tem fim. Certas pessoas, quando perdem o perfeito equilíbrio, "falam sozinhas", na rua ou onde estejam. Muito freqüente ouvimos esta frase: "Fulano anda falando sozinho", com o significado de "Fulano está desarranjado da cabeça." Mas mentalmente não há no mundo quem não viva a falar sozinho, pois que o ato de pensar é isso.)
Enquanto o seu compadre Teodorico roncava na cadeira de balanço, Dona Benta falava sozinha.
― "Criança a gente doma, como os potros!" disse o compadre e como quase todas as pessoas pensam ― é aqui no sítio que eu vejo exatamente o contrário. Não domei Pedrinho, nem Narizinho, nem Emília, e duvido que haja crianças mais bem educadas. "Bem educadas" no verdadeiro sentido, não no sentido comum; pois o que vejo por aí é confusão de "bem educado" com "bem comportado", isto é, com a submissão das pobres crianças a todas as ordens dos pais ou professores. "Sente-se com as mãos sobre o colo e fique quietinha ― e a triste criança, o bichinho mais irrequieto da natureza, fica ali a constranger-se e a bocejar de tédio, para que umas toupeiras, como este meu compadre, se rejubilem e digam: "Estão vendo como é bem educada esta criança?"
E há a significação da criança! Para quanta gente as crianças não passam duma simples annoyance, como dizem os ingleses! Para outras são brinquedos, enfeites da casa, bonecas vivas. Poucos têm a verdadeira noção do que é criança para o mundo, ou para a humanidade. É a própria humanidade na parte em que se vai formando o futuro. O futuro!... Palavra tremenda. O futuro é tudo, é a continuidade, a perpetuação. O passado da humanidade é de alguns milhares de anos. O presente é o dia de hoje. O futuro é toda a imensidade de tempo que o homem possa viver neste planeta!... O presente é 1, o passado é 10 ― o futuro é 1.000 ou 1.000.000 ― que sabemos nós?
Tudo o que a humanidade de amanhã vai ser está em germe na criança de hoje. Se fôssemos mais inteligentes e compreensivos, a vida na terra poderia tornar-se edênica. E o caminho para isso seria dos mais simples: considerar a criança como o broto do futuro e condicionar esse futuro por meio do condicionamento do broto. Poderíamos planejar o futuro! Fazer do futuro um sonho de felicidade e beleza, com o simples condicionamento do broto!
Narizinho apareceu na varanda! Veio dizer que Emília estava judiando do Visconde.
― Judiando como? ― perguntou Dona Benta.
― Judiando mentalmente, vovó. Quer que o Visconde mude de idéia, como a gente muda de roupa.
― Que idéia ela quer que o Visconde mude?
― Há um broto de roseira que teima em se voltar para o lado do sol, isto é, para fora da janela. Emília não quer isso. Quer que o broto se volte para dentro, a fim de que quando o broto der rosas ela nem precise levantar-se na redinha para apanhá-las — será só espichar a mão. E o Visconde diz que o broto age assim por causa dum tal "tropismo", que é a irresistível tendência dos brotos de se voltarem para o lado em que há mais luz.
― E que tem isso?
― Tem que Emília não quer que o Visconde admita o tal tropismo.
Dona Benta riu-se. Aquelas crianças brincavam com expressões científicas como outras brincam de bolinhas ou pelota. Emília a judiar do Visconde por causa do tropismo ― a atração ou repulsão que certas substâncias ou fenômenos exercem sobre o protoplasma! Ali no broto da roseira era o fenômeno luz que atraía a protoplasma do broto...
― Luz!... falou Dona Benta. Nem Einstein sabe o que é a luz! Tropismo: atração que a luz exerce sobre o broto humano, a criança?
Quantos problemas, meu Deus! Mas uma coisa me parece certa: está nas mãos do presente condicionar o futuro por meio da moldagem dessa cera mole chamada criança. Desde que a criança é a massa de que sai o futuro, se soubermos lidar com essa massa daremos ao futuro a forma que quisermos ― que planejarmos.
E a boa velhinha devaneou longamente sobre as tremendas possibilidades duma coisa que viesse substituir a atual imbecilidade a que damos o nome de educação, e que seria o Planejamento do Futuro ― O Plano Qüinqüenal que da cera de hoje fizesse sair um Futuro Maravilhoso, planejado, estudado, idealizado, em vez do que, como até hoje, o que o Acaso quer que saia.
Nesse momento o coronel acordou. Bocejou, espreguiçou-se.
― Parece que dormi, comadre...
― Dormiu, sim, uma boa soneca.
O coronel acabou de despertar e recordou-se do que estava conversando. Retomou o fio das idéias e disse:
― Pois é como eu estava dizendo, comadre. Criança a gente doma, como os potros.
― E se em vez de as domar nós a condicionássemos de acordo com um sábio planejamento do futuro?
O Coronel Teodorico abriu a boca. Piscou três vezes. Não entendeu nada.
Dona Benta suspirou, e lá consigo disse para si mesma:
― A dificuldade é essa. Este idiota do meu compadre é o 90 por cento da humanidade. Nada podemos fazer sem o seu apoio — mas como obter apoio de quem não compreende?
O fazendeiro bocejou de novo e tentou prosseguir em suas teorias, mas Dona Benta o interrompeu:
― Durma, compadre. Deixe isso de pensar para mim... (9:297-301)
3. Sair da Quinta Avenida, o torvelinho perpétuo, e cair na Biblioteca Pública, corresponde a mudar de planeta. Reina lá um silêncio de recolhimento, e ainda uma constante temperatura de primavera, por mais que fora o verão escalde.
Mr. Slang levou-me à seção das crianças, que eu ainda não conhecia.
As crianças... Creio que foi Dumas quem disse ser estranho como duns animaizinhos tão inteligentes sai o estúpido bicho que é o homem adulto. Sim, sim. Tem razão. O lindo da criança, o ultra lindo das crianças está em que são naturais. Com o crescer mete-se a educação a fazer do animalzinho natural o animalejo social. Educar vale dizer socializar, isto é, artificializar. Daí a estupidez adulta. Educação... Meio de arruinar a exceção em proveito da regra, disse Nietzsche. Meio de destruir a coisa única que dá valor: — personalidade, individualidade. Mas...
Encantou-me, aquilo. Em duas grandes salas, presididas, do centro, por uma guardiã na sua mesa entre grades (ótimo esse engradamento do único adulto ali existente), desdobram-se, cobrindo as paredes, as estantes baixas onde tudo que é literatura infantil publicada no mundo se reúne. Cadeirinhas de meia altura, mesinhas em miniatura, toda a mobília criada "ad hoc" para os freqüentadores da seção, fazem-nos sorrir logo de entrada. Apesar de estupidificado pela educação, o pobre adulto conserva dentro de si a criança que foi ― e sorri sãmente, animalmente, todas as vezes que algo lhe fala a essa criança.
Assim se deu comigo. Pus-me a sorrir o sorriso puramente biológico, sem intenção, sem causa — o sorriso da criança solta. Aquelas cadeirinhas, aquelas mesinhas, aqueles livros de figuras...
Não há ali regulamento estragador do prazer do consulente; ou então o regulamento é feito de modo a coincidir com os impulsos naturais da criança que entra: ― "fossar" na imensidão de livros, sem atender a mais nada além da sua natural curiosidade e irrequietismo.
Gostei, sim; gostei do sistema. Vi dois meninos entrarem, de narizinho para o ar, farejando. Já conheciam os recantos da biblioteca. Foram a uma estante e sem vacilar um deles puxou certo livro. Sentaram-se no chão para folheá-lo.
Aproximei-me para ver que obra os havia interessado. Era um livro de ciência infantil, aberto na página dos aeroplanos. O mais taludo explicava ao menor uma particularidade qualquer de certo aparelho, talvez expondo uma grande idéia que tivesse na cabeça. O outro olhava apenas, sem ânimo de objetar.
― Um futuro Lindbergh, murmurou Mr. Slang. É assim que eles se formam.
― Estou gostando imensamente da liberdade que gozam aqui as crianças, Mr. Slang! Deitados sobre o livro, no chão, esses dois! Mas isto é único! Chega a fazer-me perdoar vários crimes da América.
O prazer das crianças é ali intenso, porque podem mexer à vontade. O "não faça isso, não bula nisso" não existe. Podem tirar das estantes os livros que desejarem, dois, três, quatro ao mesmo tempo, e vê-los, lê-los, cheirá-los quanto quiserem, onde e como quiserem — no chão, como os nossos dois futuros aviadores, nas mesinhas, nas cadeirinhas de balanço. E nem sequer necessitam repô-los no lugar. Nenhuma obrigação ali, além da de se regalarem com a livralhada deliciosa, cheia de coelhinhos que falam, como o famoso Uncle Wrigley que todas as crianças adoram; e a Raggedy Ann, boneca de pano famosa, e Alice in Wonderland, e Robinsons de todos os jeitos, e Gullivers de todos os formatos, e Tom up my thumb e Cinderela...
Quanta razão tinha Peter Pan, o menino que jamais quis crescer! murmurei com toda a sinceridade de alma. Que asneira crescer, ficar gente grande, ter de virar bicho social ― estúpido, hipócrita, recalcado... Ser um Hoover, atrapalhadíssimo com os tremendos problemas do após-guerra, quando se pode ser aquele garoto, que sonha talvez um novo aeroplano, sem asas, sem motor, sem rabo...
Mr. Slang concordou, confessando que a vida lhe fôra um perfeito sonho mágico até o dia em que perdeu a crença nos coelhinhos que falam, nas fadas que com a varinha de condão viram uma coisa noutra, nos príncipes encantados que se casam com princesas mais encantadas ainda. E como contou vários episódios da sua infância de sonho, passados no Kensington Garden de Londres, parque onde jamais se atreveu a entrar depois de adulto ― de medo de matar as deliciosas impressões ali recebidas em criança. (15:211-214)
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Ver: LITERATURA INFANTIL-JUVENIL 8 (9:249-256)