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ESCRITORES: RUDYARD KIPLING

RUDYARD KIPLING: Em face do desconhecido, do inexplicável da natureza, das ameaças ocultas no sombrio da floresta, do escachão das grandes quedas d’água, do rugir das feras, o homem sente essa emoção contagiosa chamada pânico. É Pan que se aproxima, é alguma montaria de Pan, é um elemento, uma força qualquer das com que Pan brinca — e a emoção pânica surge, sempre com a sua característica de contagiosa.
Diante dos mistérios da natureza, Kipling sente essa emoção pânica, fixa-a com os recursos artísticos do seu estilo e faz que ela contagie o leitor. Reside nisso o seu gênio.
O cenário de Kipling é quase sempre a Índia, como o de Jack London, outra alma pânica, é quase sempre a fria terra do Alasca. Seus personagens nunca são os personagens franceses — um macho que caça uma fêmea pertencente a um terceiro e num hotel exercita uma função fisiológica que o deixa desapontado e de crista caída. É o tigre crudelíssimo e covarde — Shere Khan; é a pantera negra de movimentos elásticos — Bagheera; é a tribo do Bandar-logs, que nas ruínas de uma cidade morta, engolida pela jângal, brinca de cidade, como nós aqui, bandarloguissimamente, brincamos de país; é a serpente das rochas, Kaa, magnífica de velhice e arte; é Jacala o Mugger do Mugger-Ghaut, velho crocodilo comedor de coolies; é Purun Bhagat, o Primeiro Ministro de um principado indiano que se fez santo e gastou meia vida num píncaro do Himalaia, meditando sobre o grande milagre da vida; é Quiquern, o cachorrinho vitimado pela inferioridade egoística de uma tal Maisie — a Mulher; é Kim, o menino que cavalgava canhões...
Kipling é a vida, a natureza, o Ar Livre, a Fera, a Índia inteira, como Joseph Conrad é o Mar com todos os peixes e tempestades. Pan, em suas infinitas modalidades, o surpreende e assusta, e Kipling anota esses sustos e os põe em composição artística para que também os leitores o sintam e se assustem panicamente.
Cândido de Figueiredo diz candidamente que pânico é medo sem motivo. Eu queria metê-lo no caminho dos Dholes, os Cães Vermelhos do Dekkan em razia depredatória pelos domínios de Mowgli — para ver se os figos do figueiral desse homem não se arrebentavam todos eles e se ele não rasgaria imediatamente aquela página do seu dicionário. O medo causado por um avanço de Dholes é para ele medo sem motivo...
Cada conto de Kipling é uma obra prima que vale toda a clorótica literatura francesa atual. Tomemos "The Undertakers" que poderíamos traduzir como os Necrófagos. Três personagens só — Jacala o velho mugger (crocodilo da Índia), o Chacal e o Adjudant-crane. Este Adjudant é uma espécie de Grou, coisa parecida com o nosso Jaburu de bicanca tucanal, mas reta.
Encontram-se ao pé de uma ponte e conversam. O Chacal, miserabilíssimo e sempre faminto, lamuria e bajula o mugger, de cujos restos vive. Chama-lhe Protetor dos Pobres, Orgulho do Rio e outras coisas que os nossos Chacais de dois pés costumam dizer dos muggers que viram governo.
Toda a psicologia do lambujeiros, do fraco, do covarde, do miserável, estampa-se nos gestos e palavras desse animalzinho no qual Kipling, talvez sem intenção, pinta o bajulador humano. Nas atitudes e palavras do Grou estampa-se a esperteza do "aproveitador". Dá idéia de um tabelião da roça que faz política e rói verbas da Câmara. Já o mugger, cônscio da sua força, reproduz exatamente a psique dos grandes homens, isto é, dos homens que galgam posições e pelo simples fato de se verem lá em cima, com a faca e o queijo na mão, julgam-se não só onipotentes como oniscientes. "Eu penso assim. É assim. Eu, eu, eu..."
O Mugger do Mugger-Ghaut era, do focinho à cauda, todo eus — todo ele — e o Chacal batia no peito, concordando até com o que o crocodilo não dizia.
Nessa conversa dos três necrófagos, o mugger rememora ou, melhor, conta a história de um dos mais terríveis dramas da dominação britânica na Índia, o Indian Mutiny, no qual se ergueram para o massacre em massa dos ingleses todas as tropas de sipaios.
Como conta? Conta como podia contá-la. Um crocodilo dos rios só pode ter conhecimento de uma guerra pelos cadáveres que boiam nas águas e ao sabor da corrente vão derivando rumo ao mar. Jacala teve notícia, pelo seu primo o Gavial, comedor só de peixe, de que as águas do Gunga — o Ganges — "estavam muito ricas" — e rumou para lá. De fato, encontrou-as riquíssimas, tantos eram os cadáveres de ingleses que passavam boiantes. Jacala engordou como nunca em sua vida e muito apreciou o fato dos "caras-brancas" não usarem as pesadas jóias que usam os nativos. Jóias pesadas fazem mal até a estômagos de crocodilos. Fartou-se e refartou-se do sólido beef britânico.
Depois houve um arrefecimento na procissão de cadáveres. As águas começaram a empobrecer-se. Por pouco tempo, aliás. Novas ondadas de corpos recomeçaram a derivar — mas desta vez cadáveres de nativos. Era a revanche, era o inglês já a dominar o motim e a massacrar a carne indiana a tiros de canhão.
É preciso parar. Quem se mete a falar de Kipling esquece-se de que o mundo tem mais o que fazer e espicha-se como se estivesse a escrever livro. Kipling é a vida, é a Natureza — e a Natureza sempre foi muito comprida.
Forneçamos Kipling, e autores que tais, ao nosso pobre povo, até aqui envenenado pelos romancistas da alcova francesa e por dicionaristas como o tal do medo sem motivo. Demos-lhe escritores pânicos — porque só eles sabem a Vida e só suas obras contagiam os leitores com a mais alta das emoções — a Emoção Pânica. (7:325-328)