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ESCRITORES: EUCLIDES DA CUNHA

EUCLIDES DA CUNHA: 1. Tua análise do estilo rompente de Euclides me satisfaz. A ossatura e o músculo, ele os consegue como dizes. Mas não bastaria isso. Sem a rede de nervos dum pensar original, fortemente enfibrado pelo metal deploy‚ das ciências naturais e sociais e da filosofia moderna, bem digeridas e assimiladas, Euclides não seria esse fenômeno novo que nos esbarronda, um homem que tem o que dizer, sabe o que diz e o diz — assombro! — em português de verdade. Porque a língua de Euclides já é a Língua. (2:51)
2. Súbito, um relâmpago. Explodem Os Sertões. A dose de ciência que Euclides ensartou no grande livro soube-nos ao paladar como revelação maravilhosa. Lemo-lo com os cabelos em pé. E quando Euclides citou Gumplowicz, sentimo-nos siderados. Aquilo dava impressão de arma secreta de Hitler...
O fenomenal triunfo d'Os Sertões proveio sobretudo da dose de ciência embrechada no livro e do arrojo de suas antíteses. Novidade das grandes. Mergulhados que ainda vivíamos no impressionismo dos "Perfís de Mulher" de Alencar, os relâmpagos euclidianos nos cegavam os olhos. E também não estávamos afeitos ao estilo nervoso, aqui e ali cortado de curtos-circuitos chispantes. Euclides foi o nosso primeiro desasnador. (5:107-108)
3. Na nossa literatura de reflexo, insistentemente água de rosas, cor de rosa, maciazinha, cheia de "pequenas" cor de batata, de morenas de buço, de "Moreninhas" que se perdem com boêmios velhos e se casam com amanuenses de peito afundado; tremendamente burocrática em Machado de Assis; sem um herói que não fosse suburbano, sem uma paisagem que não fosse variante da palmeira com um céu "americanamente azul" atrás, irrompe de súbito Euclides como um Mongol Tonante a chispar raios — raios de metáforas inéditas, uivos de indignação, com asperezas de lixa grossa, com desprezo de todos os veludilhos. A forçar, a reforçar, a dobrar a força dos verbos dessorados com o adminículo do "re" reforçante — ressurte, rebrame, recresce, refoge, ressalta... A enxertar na pobreza do vocabulário beletrístico uma quantidade de termos técnicos de alto efeito analógico — imprimadura, jusante, a montante, incoercível... A introduzir todas as ciências na literatura — até a Geologia, coisa que os nossos antigos vates de cabeleira desconfiavam ser alguma irmã esquecida do velho lote das musas gregas. A arremessar à cara do leitor incauto nomes-bombas: Maudsley, Gumplowicz... A ter a coragem de erguer os olhos dos detalhes meramente pitorescos à grande visão de conjunto — e a ver o país como ele é: sonho de Nabucodonosor. Colosso de pé-no-chão bichento na base (o sertão); de modesta calça de brim no meio (as cidadezinhas); de gravata de seda e cartola no topo (Rio de Janeiro). Indumentariamente civilizado na cabeça ao pescoço (cartola, pastinha, pince-nez de galalite, bigode raspado, colarinho americano, gravata de viscose (Capital Federal); semi-civilizado do pescoço ao umbigo (nos sentimentos de cordura e aceitação resignada, budística, chinesa, do marasmo eterno (o "interior" urbano); barbaresco do umbigo aos pés (no sertão sem fim, lá onde Getúlio acaba e Lampião começa).
E isso num meio geográfico literariamente canaãnesco, todo perfumes da "balsamina em flor", todo sabiás pousados em espanadores em pé (palmeiras), todo borboletas amarelas e agüinhas murmurejantes; mas na realidade, com a exceção do Sul, todo carrascais e caatingas espinhentas, e mandacarús cruéis, e rios que correm para dentro como unhas encravadas, e pantanais que não têm fim, e estiagens re-dantescas, e um sol, ah, que sol! que re-sol! que peste de sol! que eterno Lampião facinoroso!
Euclides, gênio que era, foi o primeiro a ver a realidade do conjunto, a tragédia do homem derrotado pelo meio, e a traçar um grandioso painel ... Gustavo Doré no Inferno, mas sem os arredondamentos clássicos de Doré. Quadro estupendo! E pintou-o com tintas inéditas; não com os tubinhos de aquarela Windsor & Newton ou Gunther Wagner, mas com tintas tomadas do chão: a lama negra dos barreiros, o vermelho do sangue em coágulos dos jagunços, as escorrências sépias do cangaço dos sertões e do cangaço pior da mazela administrativa. E não espalhou essas tintas com pinceizinhos macios de pêlo de marta, sim com estupendas brochas de barba de bode amarradas com cipó arranha-gato. Na "casa dos dois mil réis" da nossa literatura, Os Sertões de Euclides equivalem a um bloco de pedra, trabalhado a picareta por um Bourdelle mongol e estouvadamente atirado para cima de todos aqueles pentinhos e sabonetinhos e miminhos de celulóide. (6:250-252)
4. A arte de Euclides da Cunha, por exemplo, era uma esplêndida demonstração da engenharia e do cienticismo feita com palavras literárias. (7:230)