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ESCRITORES: MACHADO DE ASSIS

MACHADO DE ASSIS: 1. Há a Magia Negra, a Magia Branca — e a Magia Literária. D'Amicis é um grande Mago Literário. E sabe, Rangel, que aqui no Brasil também há um livro com o poder de me enfeitiçar assim? Creio que já o li, espaçadamente ou de uma assentada, oito ou dez vezes, e sempre com o mesmo encanto: Memórias Póstumas de Brás Cubas. (2:37)
2. Há o exemplo de Machado de Assis, que nunca podemos perder de vista. Aquele cuidado com a forma é talvez 80% na grandeza do insígne mestre. (4:252)
3. Entre as obras de Machado de Assis cumpre acrescentar mais esta: a biografia que ele determinou.
Machado de Assis, na sua ascensão ao Perfeito, parte do quase enfadonho. O medo de inovar, de exceder-se, de dizer demais, tira qualquer interesse aos seus primeiros romances — mas o leitor enfadado sente que há ali uma inapreensível superioridade. Talvez a da língua, que começa a produzir efeitos novos. De uma plasticina pobre, como é a língua portuguesa, começam a brotar surpreendentes finuras — e ficamos sabendo que a riqueza de uma língua não vem da sua opulência vocabular. Pobre também é a argila, que dá toscas panelas nas mãos do oleiro ou dá o Perseu nas de Benvenuto Cellini. Por fim a grande revelação veio: não há língua pobre, não há argila pobre, para um grande artista. Há artistas pobres. Há artistas tão miseravelmente pobres que só sabem escrever jogando com toda a riqueza vocabular da língua. "Fizeste-la rica porque não pudeste fazê-la bela", disse Zeuxis ao discípulo que pintara uma Vênus excessivamente enfeitada.
Machado de Assis ensinou o Brasil a escrever com limpeza, tato, finura, limpidez. Criou o estilo lavado de todas as douradas pulgas do gongorismo, do exagero, da adjetivação tropical, do derramado, da enxundia, da folharada intensa que esconde o tronco e o engalhamento da árvore.
Antes dele havia grandes mestres que começavam contos assim: "O pegureiro tangia o armento para o aprisco." Era lindo, o extasiante, a beleza de espernear. Machado de Assis provou que isso é o idiotamente feio. Como o provou? Fazendo o contrário. Escrevendo. "O negro tocava o gado para o curral."
Machado de Assis expulsou do estilo todas as falsidades. Expulsou até o patriotismo e a grotesca brasilidade — essa intromissão da política de "terroir" na arte. Foi contemporâneo de casos de super-idiotia, em que poetas de nome falavam em "céu brasileiramente azul". Para Machado de Assis um céu azul é simplesmente, e sempre, um céu azul — só.
Ensinou-nos a escrever tão bem, dando-nos uma série de obras tão perfeitas de equilíbrio e justa medida, que "abafou a banca", como diria um meu amigo analfabeto, impenitente jogador de roleta. E não só o abafou no Brasil, como ainda em Portugal. Nem o próprio Eça de Queiroz, o talento mais rico em arte que Portugal produziu, chega à perfeição de Machado. Em Eça há "elegâncias", maneirismos, atitudes — deliciosas atitudes, mas que o impediram de planar nas regiões sereníssimas do estilo de Machado de Assis.
Os contos de Machado de Assis! Onde mais perfeitos de forma e mais requintados de idéia e mais largos de filosofia? Onde mais gerais, mais humanos dentro do local, do individual? Temos de correr à França para em Anatole France encontrarmos um seu irmão. Este, entretanto, desabrochou no mais propício dos canteiros — animado por uma alta civilização, estimulado por todos os prêmios, rodeado de todos os requintes do conforto e da arte. Já o pobre Machado de Assis só teve como ambiente um sórdido Rio colonial, e prêmio nenhum afora a sua aprovação íntima, e parquíssima renda mensal para a subsistência; e como leitores, nada do mundo inteiro, que era o leitor de Anatole — mas apenas meia dúzia de amigos. O preço pelo qual vendeu ao editor Garnier a propriedade literária de toda a sua obra — oito contos de réis, 500$000 cada livro — mostra bem claro a extrema redução do seu círculo de leitores.
Mesmo assim, cercado por todas as limitações, foi de sua pena que saiu a primeira obra prima da literatura brasileira, essas Memórias Póstumas de Braz Cubas, livro que um dia o mundo ler com surpresa. "Sera possível que isto surgisse num país in fieri, lá pelos fundões das Américas?" dirão todos.
E deu-nos depois Dom Casmurro, o romance perfeito, e Esaú e Jacó e Quincas Borba e finalmente Memorial de Aires, obra em que estiliza e romanceia o nada — o nada da velhice — da sua velhice de quase 70 anos.
Entremeio aos romances foi produzindo contos — e que contos! Que maravilhosos contos, diferentes de tudo quanto se fez no Brasil ou na América! Contos sem truques, sem "machine", sem paisagem de enchimento, tudo só desenho do mais cuidado, como os de Ingres. Tipos e mais tipos, almas e mais almas — uma procissão imensa de figuras mais vivas do que os próprios modelos. E em que estilo, com que pureza de língua!
A literatura brasileira é pobre de altos valores. Muita gente na canoa, muito livro, muito papel impresso, muita vaidade e, modernamente, muito cabotismo. Mas está redimida de todos esses defeitos pela apresentação de uma obra de solidez eterna, tão duradoura quanto a língua em que foi vazada.
"Missa do Galo", "Uns Braços", "Conto Alexandrino", "Capítulo dos Chapéus", "Anedota Pecuniária" — é difícil escolher entre os contos machadianos, porque com La Prensa é que me animei a dizer sobre ele, tão pequenino, tão insignificante, tão miserável me senti. Envergonhei-me de juízos anteriores em que, por esnobismo ou bobagem, me atrevi a fazer restrições irônicas sobre tamanha obra. E se não desisti da incumbência foi por me proporcionar ensejo de penitenciação em público. Porque, francamente, acho grotesco que na atualidade brasileira alguém ouse falar de Machado de Assis conservando o chapéu na cabeça. Nossa atitude tem de ser a da mais absoluta e reverente humildade. Quem duvidar, releia o "Conto Alexandrino" ou a "Missa do Galo".
Somos todos uns bobinhos diante de você, Machado...
A cautela desconfiada com que o Machado de Assis social viveu no meio carioca permitiu-lhe o máximo de felicidade possível no seu caso — um caso difícil, de extrema superioridade mental aliada a extrema sensibilidade de um orgulho sem licença de manifestar-se em vista do tom da pele e do cargo incolor que ocupava na administração. Quantos ministros orgulhosos e ocos não foram seus superiores legais e sociais — a ele que, por natureza, era o mais alto do Brasil? A vassoura do esquecimento já varreu para a lata do lixo o nome de todos esses magnatas, de todos esses seus "superiores"; mas o nome de Machado de Assis continua em ascensão.
Havia nele um curioso gregarismo. Sempre gostou de grêmios, sociedades literárias; chegou até a fundar uma academia de "imortais" da qual foi o presidente e se tornou o único imortal sem aspas. A explicação disso talvez fosse a sua ingênita necessidade de observar o "jogo das marionetes": agremiando-as em torno de qualquer tolice humana, tinha-as comodamente à mão para o estudo, como o anatomista tem em seu laboratório reservas de coelhos, cães e macacos em gaiolas, para uso experimental.
A filosofia de Machado foi mansamente triste. Estudou demais as cobaias, conheceu demais a alma humana. Filosofia sem revolta, calmamente resignada. A conclusão última aparece em Braz Cubas, o herói da vulgaridade satisfeita que termina as memórias póstumas com um balanço em sua vida terrena. Balanço com saldo. Que saldo? "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
Saldo equivalente apresentou a vida de Machado de Assis. Não teve filhos. Não legou a criatura alguma os seus pigmentos, a sua gagueira, a sua tara epiléptica, o seu desencantamento das marionetes — já que não poderia legar-lhe também o seu gênio. E não houve em sua vida ato de maior generosidade. Que coisa terrível para uma criatura qualquer, ainda que de mediana sensibilidade, conduzir pela vida afora a carga tremenda de ser filho de Machado de Assis!
— Sabe quem é aquele corvo triste que vai saindo daquela repartição?
— Aquele corcovado, moreno, careteante?
— Sim. Pois é o filho de Machado de Assis...
Estamos a ver o ar de apiedada compunção que se estamparia no rosto do informado.
A natureza só permite aos gênios uma filha: a sua obra. Machado de Assis compreendeu-o como ninguém, e depois de dar ao mundo a mais bela das filhas afastou-se do tumulto sozinho, cabisbaixo, na tranqüilidade dos que cumprem uma alta missão e não deixam atrás de si nenhuma sombra dolorosa. (7:333-338)
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Ver: ESCRITORES: CAMILO CASTELO BRANCO 5 (2:98-99)