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FUTURISMO

O futurismo apareceu em São Paulo como o fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andrade. Turista integral, alternando estadias em Paris com passeios a Ribeirão Preto, leituras de Marinetti com leituras d’"O Democrata" de Pilão Arcado, visões de mármores de Mestrovich com santos de olhos arregalados feitos na Bahia, apachismos elegantes de boulevard com o mumismo urbano de Mariana e Diamantina — sentia melhor do que ninguém a nossa cristalização mental e empreendeu combatê-la.
Mas combatê-la como? O velho processo do rico, da sátira, do sarcasmo sempre se revelou inútil entre nós. Dá resultados nos países de cultura disseminada, onde um riso como o de Voltaire se propaga em ondas hilariantes dum extremo a outro. Aqui morre nos lábios de quem o arrepenha, porque a incultura não ondula coisa nenhuma.
Mas Oswald, psicólogo de fartos recursos, teve uma idéia genial: recorrer ao processo da atrapalhação.
— "Essa gente, refletiu ele, está a jogar uma partida de xadrez que não tem fim; sempre as mesmas pedras, sempre as mesmas regras, sempre as mesmas saídas de peão do rei, sempre os mesmos xeques de rainhas e torre. O riso, a piada de quem lhes sapeia o jogo, de nada vale: não ligam, estão absortos demais. O recurso é um só, meter as mãos no tabuleiro e mexer as pedras como quem mexe angu."
E embora justificasse o angu com teorias metafísicas, transcendentalíssimas, tais teorias não passavam duma peninha (o futurismo), cujo fim era atrapalhar inda mais.
Sabem o caso da peninha?
Um sujeito propôs a outro, esta adivinhação: "Qual é o bicho que tem quatro pernas, come ratos, mia, passeia pelos telhados e tem uma peninha na ponta da cauda?"
Está claro que ninguém adivinhou.
— "Pois é o gato", explicou ele.
— "Gato com peninha na cauda?"
— "Sim. A peninha está aí só para atrapalhar."
As teorias estéticas dos futuristas são essa peninha...
Assim pensou e assim fez Oswald. E os enxadristas, com grande indignação, tiveram de interromper a partida interminável. Xadrez exige calma, repouso, ordem, regra, sistema, boa educação, e do mexer o angu nascera a desordem, a molecagem, o barulho, a extravagância.
O rei passou para o lugar do peão; a rainha deu de pular como o cavalo; o cavalo passou a ter movimentos de bispos e no fim de tudo quem levava o xeque-mate era que saía ganhando.
"A besta do Homero... A cavalgadura do Shakespeare... O cretinismo do Anatole..."
Inversão, ou, melhor, atrapalhação, angu completo dos valores e regras universalmente aceitos. A gramática, a boa ordem, a justa medida, a clareza — pilhérias! Por que é que o pronome reflexo não há de abrir períodos? E zás: "Me parece que..." E o "você" expeliu o "tu" e a velha asneira, que andava no refugo porque só os asnos a manuseavam, foi reabilitada, vestida à moderna e veio à tona de livros e jornais, toda garrida, provando mais uma vez que tudo vai da apresentação, e que um urubu preparado por Vatel pode saber melhor ao paladar do que uma perdiz assada pelas nossas cozinheiras do trivial.
S. Paulo é um meio muito rico de vitaminas mentais e só lá era possível que o gesto de Oswald criasse escola. Assim é que brotou do Bom Retiro, Brás, Bexiga e adjacências uma legião de asseclas. Como sempre acontece, poucos dos legionários compreenderam o alcance da "batalha do Ernani" oswaldiana, puro "meio" para a consecução de um "fim". E com raríssimas exceções esses bravos guerreiros de 18 anos e menos adotaram o meio como fim. Atrapalhar, para Oswald, era o meio de conseguir descristalizar a mentalidade. Só. Mais nada. Ela depois que criasse o que lhe aprouvesse, livremente, sem nenhum dogma, nenhum quadro, nenhuma autoridade constringente. Não foi outro o objetivo de Oswald, embora ele próprio, no calor da luta, se iludisse e tentasse construir, esquecido de que as duas funções, a destrutiva e a construtiva, jamais cabem juntas a um mesmo homem. Oswald revelava-se aquele fecundo Nietzsche do "Vade mecum? Vade tecum!" Queres seguir-me? Segue-te!
Em vez disso a plêiade futurista, coesa no bloco do Quebra-Vidraças, deu de seguir Oswald, atrapalhando também, mas errada. Errava adotando a atrapalhação como fim supremo, objetivo de todas as manifestações artísticas modernas, e não como simples meio, único eficaz numa terra onde o riso do Voltaire, em vez de matar, engorda.
Por instinto, Oswald sempre repeliu os sectários e sempre refugiu de transformar sua colher de mexer, hoje colher de pau-brasil, em paradigma, em maracá sagrado. E passa a vida a criar cismas dentro do grupo, a dividi-lo, a renegar sumos pontífices (como Graça Aranha), a expulsar adesistas — a impedir, enfim, que o chamado futurismo se cristalize em escola e passe a ser fim em vez de simples meio de combate.
Esta brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisa não é tal movimento, vai desempenhar uma função séria em nossas letras. Vai forçar-nos a uma atenta revisão de valores e apressar o abandono de duas coisas a que andamos aferrados: o espírito da literatura francesa e a língua portuguesa de Portugal. Valer por um 89 duplo — ou por um novo 7 de setembro. Nestas duas datas está exemplificado o modo de falar da escola antiga, francesa, e da nascente escola nacionalista.
Porque é estranho isto de permanecermos tão franceses pela arte e pensamento e tão portugueses pela língua, nós, os escritores, nós, os arquitetos da literatura, quando a tarefa do escritor de um determinado país é levantar um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada nesse país.
Formamos, os escritores, uma elite inteiramente divorciada da terra, pelo gosto literário, pelas idéias e pela língua. Somos um grupo de franceses que escreve português — absolutamente alheios, portanto, a um país da América que não pensa em francês, nem fala português.
A eterna queixa dos nossos autores, de que não são lidos, vem disso — dessa anomalia que eles não percebem. O público não os lê porque não lhes entende nem as idéias nem a língua. Têm eles que contentar-se com um escol muito reduzido de leitores também educados à francesa, os quais em regra preferem ir logo às fontes, aos franceses de lá, aos Anatoles e Verlaines.
Este dualismo de mentalidade e língua tem que cessar um dia. Os gramáticos hão de convencer-se, afinal, de que a língua portuguesa variou entre nós, como acontece todas as vezes que um idioma muda de continente. Como o mesmo latim variou em França dando o francês, em Portugal dando o português, em Espanha dando o espanhol. E que continuar a variar, a distanciar-se mais e mais da língua mãe, até que um dia fique em face dela como está ela hoje em face do latim de Cícero. Seria fato virgem no mundo persistir imutável, apesar da mudança de continente, o instrumento língua — que é eólio e varia até quando muda para um país vizinho.
Em casos tais, freqüentes na história, a regra é a língua velha ir ficando cada vez mais confinada entre os eruditos, enquanto a língua nova se expande no povo. Por fim vence o povo, que é o número e a força. Nos países europeus de base latina o latim resistiu quanto pôde, escorado pelos sábios e eruditos — os despresadores da "corrupção" popular. Dia houve, porém, em que toda a resistência foi inútil e d’alto a baixo a língua se tornou una, pela vitória popular.
Entre nós estamos ainda longe do tempo em que o português ser língua apenas de um ou outro abencerragem feroz e não lido, mas tudo caminha para tal desfecho. O dissídio já esta patente. O povo fala brasileiro e os próprios escritores que escrevem em português não o falam em família. Em casa, de pijama, só se dirigem à esposa, aos filhos e aos criados, em língua da terra, brasileiríssima.
Contou-nos Bastos Tigre que ouviu Rui Barbosa dizer de um autor numa livraria:
— "Já conheço ele."
E ai de quem não falar assim no trato comezinho da vida! Não só ganha fama de pedante, de "difícil", como não é bem entendido. Sobretudo ao telefone. Dada a necessidade de extrema clareza, ninguém ao telefone fala em português, se quer evitar complicações.
Bastos quis um dia falar, depressa, depressa, caso urgente, e esqueceu-se de que estava no Brasil.
— Alô! Se o excelentíssimo X está, obséquio, e grande, far-me-á o atendente, chamando-mo.
Ninguém pescou. Bastos insiste. Nada. Berra. Nada. Por fim manda às favas o português de frei Luiz de Souza e diz:
— O seu Coisada tá aí? Quedele ele, então? Me chame ele, já, sim, meu bem?
O Coisada acode pressuroso e Bastos jura nunca mais falar ao telefone em língua de escrever.
Já temos dois grandes escritores que escrevem na língua da terra, em mangas de camisa, e pensam de chapéu de palha com idéias da terra: Cornélio Pires e Catulo.
A elite franco-portuguesa isola-os com o mesmo desprezo que em França e Itália tinham os faladores de latim para com os Dantes e Ronsards latinófobos.
Em 1559, um tal Sebillet publicou uma coisa com esse título: "Défense et Illustration de la Langue Française", onde havia este pedaço: "Nossa língua não deve ser desprezada, même de ceux auquels elle est propre et naturelle, et qui en rien ne sont moindres que les Grecs et les Romains."
Entende-se mal e mal o que o homem queria dizer, mas deduz-se que o francês nascente era "desprezado" pela elite latinizante.
O mesmo se dá entre nós. A língua de Cornélio e Catulo só merece sorrisos — e é no entanto a que vai vencer! Já a falamos; e acabaremos, cansados de resistir, por escrever como falamos. Só então a literatura será entre nós uma coisa séria, voz da terra articulada e grafada na língua das gentes que a povoam.
A resultante da campanha futurista vai tender para apressar este processo de unificação. Mas não o realizar . Não é isso obra de um homem, nem de um grupo. É obra do tempo e do povo. (6:110-115)