ADQUIRA ESTE DICIONÁRIO IMPRESSO

Você pode adquirir este dicionário impresso através do seguinte site:

http://www.clubedeautores.com.br/book/33715--DICIONARIO_DA_TEORIA_LITERARIA_E_ESTETICA_DE_MONTEIRO_LOBATO





MEMÓRIAS

1. O próprio gênero “memórias” é uma atitude: o memorando pinta-se como quer ser visto pelos posteros – até Rousseau fez assim – até Casanova. (1:17)
2. Parece que ando na idade de ler memórias. Só nelas temos o que é possível de histórias verdadeira, com os basfond e as cozinhas e copas da humanidade. A história dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visita dos povos. É uma garni uniforme, incolor, tanto na França como na Turquia e Rússia. Mas as memórias são a alcova, as anáguas, a chinela, o pinico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal – a pele quente e nua, ora macia, ora craquenta de lepra – da humanidade, a grande humanidade com “h” minúsculo, esse oceano de machos e fêmeas que come, bebe e ama – e supõe que faz mais alguma coisa, além disso. (1:340-341)
3. E como vão as Memórias? Li aquelas tiras a lápis que V. me deu à última hora.Divagações – devaneios. Boa anotação desse sonhar acordado que o francês chama “rêverie”. Nas Memórias você precisa ser “direto” – quanto mais direto um estilo, mais forte a impressão que causa. (4:251)
4. Memórias... Não há gênero mais mentiroso, porque o mundo nos força a mentir sempre que falamos de nós mesmos – qualquer coisa que digamos sobre qualquer assunto estaremos sempre a falar, indiretamente, de nós mesmos, a nos enfeitarmos ou a nos deprimirmos (se somos masoquistas às avessas). Gostaria muito de memórias como literatura, se o sujeito é interessante, porque nas memórias o escritor aborda grande variedade de assuntos e isso o ajuda a pavonear-se em mil cabriolas diversas.
Ah, a nossa covardia infinita! No dia em que aparecer um homem de verdadeira coragem, ah esse homem escreverá o maior livro de memórias do mundo – e o mundo o apedrejará, como apedrejou o marquês de Sade, um dos únicos homens sinceros que existiu.
Somos dois em um – somos o homem que é, e o homem social que precisa ser assim e assado. O que somos, isso morre conosco; só temos coragem de escrever o que não somos, ou o que somos na nossa segunda natureza, a adquirida, a social. Eu tinha vontade (e talvez me atreva a tanto) de escrever uma tentativa de memórias – mas sairia com pseudônimo de verdade, de modo a permanecer impenetrável . mas ninguém tenta isso porque... para que fazer uma coisa apenas para benefício dos outros e nenhum para nós? O egoísmo não existe.
Conhece o Diário de Pepys? É o que mais se aproxima do que concebo como memórias. Mas Pepys teve de escreve-lo em língua cifrada para que ninguém o lesse. Pois um século depois de sua morte alguém o descobriu numa papelaria velha, e conseguiu decifra-lo e publicou-o, dando à literatura inglesa o mais interessante e humano de seus livros. Mas faltou a Pepys ser um homem superior, um grande artista; mesmo assim é uma das poucas coisas legíveis que há no mundo. (12:68-69)
5. Memórias são depoimentos pessoais no intermino processo, e valem por más testemunhas os que silenciam egoisticamente sobre o que fizeram ou viram fazer. O silêncio em tal caso corresponde a refugir ao cumprimento de um dever iniludível – contribuir cada qual com o que possa para que o amanhã seja, se não melhor, pelo menos mais esclarecido do que o ontem e o hoje. (16:197)
6. Tanto Emília falava em “minhas Memórias” que uma vez Dona Benta perguntou:
- Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?
- Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte.
- Nesse caso – caçoou Dona Benta – uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre...
- Espere – disse Emília. – O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado.
- E as suas memórias vão ser assim?
- Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: “E então morri...”, com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura – ali na batata, como diz Pedrinho.
Dona Benta sorriu.
- Verdade pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília.
- Bem sei – disse a boneca. – Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéias do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura.
Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com idéias tão filosóficas.
- Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: “Que é a verdade?” ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.
- Pois eu sei! – gritou Emília. – Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso. (23:7-8)