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ROMANCE NO BRASIL

O romance no Brasil, meu caro Artur, é uma coisa que começou certa mas se perverteu muito cedo. Começou otimamente com as MEMÓRIAS DUM SARGENTO DE MILÍCIAS, de Manuel de Almeida. Ele o escreveu muito moço e nem sequer o concluiu. O famoso romance não passa dum pedaço de romance. Parece que lá pelo meio Manuel de Almeida viu que não valia a pena acabar aquilo, por falta de público, ou porque se casou e a mulher implicou-se. Mas apesar disso ficou célebre em nossa literatura e já teve inúmeras edições. É dos tais que o leitor pega e vai até o fim. Por quê? Porque não exige tradução. Já está traduzido. É um livro cheio de incorreções, com pronomes indecentemente colocados – mas certo.
- Como certo, se é incorreto?
- Certo, porque agrada a ponto de ser eternamente lido. Todos os anos aparecem edições novas do pedaço de livro de Manuel de Almeida. Ainda agora o Martins fez uma. Até eu já editei as MEMÓRIAS. Mas Manuel de Almeida com o seu romance certo não fez escola. Os romancistas que vieram depois mudaram de rumo. Veio, por exemplo, José de Alencar, com um viveiro de araras e graúnas e índios e até uma “virgem morena de lábios de mel”, que temos de traduzir para “índia dor de cuia, com beiço úmido de saliva”. Não há mel em lábios de ninguém, como não há lingüiça em focinho de cachorro. A fisiologia manda que a língua lamba imediatamente esse mel e o cachorro coma essa lingüiça. Mas Alencar tinha muito talento e era de fácil tradução. Ficou. Será sempre lido.
- E Macedo?
- Esse veio antes de Alencar e escreveu A MORENINHA. Ah, A MORENINHA! Li esse romance no colégio, escondido – e achei-o a coisa mais linda do mundo. Meu entusiasmo foi tanto que fiz todos os meus companheiros o lerem. Tivemos a nossa “Semana da Moreninha” no Instituto de Ciências e Letras, com seu Bernardes como vigilante no grande salão de estudo. Aquele austero moço já andava premeditando a presidência da República.
- Mas então julga A MORENINHA coisa boa assim?
- Não sei. Depois de adulto tentei lê-lo e não consegui. Pareceu-me um purgante. É que naquele tempo estávamos na idade. Há a idade do sarampo, das espinhas inexplicáveis, do primeiro amor, do começo do sexo. A MORENINHA não é literatura – é remédio...
- E os outros romancistas?
- Temo-los em quantidade. Temos um hoje excelente lá no sul. E tivemos o maravilhoso Machado de Assis, ponto culminante da nossa orografia literária e de grande circulação depois que se fez efígie de moeda. Mas de Machado de Assis nem gosto de falar porque para mim virou santo, virou Himalaia, tabu. É qualquer coisa à parte e única em todas as literaturas. Deixamo-lo no Olimpo, sozinho. Falemos dos outros, de tantos outros que levaram o estilo à maior perfeição e com isso acabaram errados.
- Não estou entendendo.
- Quem prova demais prova contra, diz um brocardo jurídico. O excesso de perfeição estilística faz na literatura o mesmo que as modernas máquinas de beneficiar arroz fazem para esse grão. Essas máquinas deixam o arroz uma beleza, de tão branco e polido. Transformam-no em bastõezinhos de nácar – mas quem se alimenta só com eles acaba com beribéri. (...)
- Acha então que a perfeição da forma levada ao absoluto é erro?
- Não é erro; ao contrário, é o supremo acerto – mas dá beribéri. Porque é alimento sem vitaminas. Parece que nisso de língua andamos erradíssimos. Há duas línguas, a falada e a escrita. A falada é que é a grande coisa, pois que é o meio de comunicação entre todas as criaturas humanas, afora a muda. A língua escrita veio depois, e é coisa restritíssima. Todas as criaturas humanas jogam com a língua falada, e quantas com a escrita? Uma porcentagem insignificante. Isso faz que a língua falada resida permanentemente no apogeu da expressão e do pitoresco, ao passo que a escrita se atrase a ponto de ficar uma coisa exigidora de tradução. É muito fácil a prova disto. Mande o Manuel ler qualquer coisa. Ele lê o que está escrito e depois, inconscientemente, diz: “Isto quer dizer que...” e explica em língua falada o que o escritor teve intenção de dizer. Traduz, portanto.
- Então a grande coisa do escritor é escrever como fala?
- Ah, se fosse possível! A arte da língua escrita é a tal “Inania Verba” do Bilac, mas quanto mais um escritor escreve como fala, mais lido e gostado. Ah, que maravilha os que escrevem com todas as vitaminas da língua que falam! Como é saudável e gostoso! Escrever com os “ma que!” dos italianos, com os “Que vá!” dos espanhóis, com pontapés na gramática sempre que ela se aproxima, escrever com caretas e gestos e até com perdigotos! Tudo isso são as películas do arroz literário, nas quais residem as vitaminas. E que faz o escritor de alto coturno? Olha com o maior desprezo para tais películas e as sacode do seu estilo como se fossem caspas...
Manuel Neto riu-se com alguma incredulidade.
- A correção da língua é um artificialismo, continuei episcopalmente. O natural é a incorreção. Note que a gramática só se atreve a meter o bico quando escrevemos. Quando falamos, afasta-se para longe, de orelhas murchas. Na linguagem falada, a não ser na boca dum certo sujeito – à vontade (e repetir a frase para restaurar uma concordância é pedantismo). Os pronomes arrumam-se como podem – antes ou depois, em baixo ou em cima, e muitas vezes nem entram na frase – são pequenininhos e as palavras grandes não os deixam entrar. Em oposição a essa língua fresquíssima, tão pitoresca, toda improvisações e desleixos, com todas as cores do arco-íris, todos os cheiros e todos os sabores, temos a língua escrita, emperrada, pedante, cheia de “cofos” e “choutos”. Ah, se toda gente escrevesse como fala, a literatura seria uma coisa gostosa como um curau que comi domingo no Tremembé. Esse Manuel de Almeida foi dos pouquíssimos entre nós que escrevia como falava...
- Pois a Sra. Dupré é assim, disse Artur, radiante. Talvez esteja nisso o segredo da sua atração.
- Segredo, segredo... Creio que o grande segredo é esse, ou 70 % esse. A enorme maioria dos nossos escritores não são lidos porque ou escrevem como Coelho Neto ou se procuram ser humanos, não sabem evitar a vulgaridade. As duas grandes desgraças da literatura são essas: o artificialismo e a vulgaridade. (5:47-51)
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Ver: LITERATURA BRASILEIRA 2 (10:10-11)
ROMANCISTAS 2 (17:11-12)