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VOCÁBULOS

1. Quanto ao que propões sobre o português – interessante! – era o que eu ia propor-te nesta. Você foi o primeiro a alcançar o pólo, como Amundsen. Mandei vir o dicionário de Aulete, que ainda é o melhor, e estou a lê-lo. Aventura esplêndida, Rangel! Os vocábulos são velhos amigos nossos que pelo fato de diariamente nos acotovelarem no brouhaha da Língua, não nos merecem a atenção curiosa e indagadora que damos às palavras estrangeiras. Pelo fato de freqüentar um parente, você chega ao ponto de não poder descrever-lhe a cara – e no entanto é capaz até de desenhar de memória a cara dum estranho que vi ontem. Deixam de nos impressionar as coisas habituais. Daí o valor da leitura de dicionários. Todo o povo tumultuoso da praça pública da Língua lá o encontramos individualizado, como soldados em quartel, cada um com o seu número, o seu posto, perfilados e obedientes quando os defrontamos. Na rua vemos passar cavalos. No dicionário encontramos um CAVALO. “Quem é você?” E ele muito sério: “...substantivo masculino. Quadrúpede doméstico, solípede; ramo ou tronco em que se enxerta; banco de tanoeiro, etc., etc”. A gente regala-se com o mundo de coisas que o cavalo é, e muitas vezes também nos regalamos com as cavalidades do dicionarista. Se o cavalo é um “quadrúpede doméstico”, como se arranja o dicionarista para denominar um equus selvagem? E vamos assim mentalmente retificando aqui e ali o dicionário, enquanto ele nos faz o mesmo aos inúmeros pontos vocabulares em que claudicávamos sem o saber. Quantos novos sentidos de palavras, das quais sabíamos um só? Quanta construção bonita de frase, com forma intransitiva de verbos habitualmente transitivos? E as antigualhas merecedoras de restauração? Que deleite seguir em mente a evolução dum vocábulo! Ver, por exemplo, agora sair de hac hora, como a borboleta sai da crisálida; e preto sair de pyraites (queimado, como sai preto o papel branco depois que o fogo o queima). E caravansará sair do persa Karvan sarai. Essa leitura nos vai dando firmeza, com o conhecimento da exata propriedade dos vocábulos.
Euclides da Cunha foi um grande ledor de léxicos. Nos Sertões eu notei como ele fugia à vulgaridade sem cair nos abstruso, por meio do emprego de palavras que o jornalismo não estafou (porque a cachomorra que achata todas as palavras da língua é sempre o jornalismo). Em vez de prematuro, imaturo. Implexo, por complexo, etc. uma variação dos prefixos habituais da imprensa – e a frase fica mais fina, toda petulante de distinção. A desgraça em tudo é a vulgaridade – o “toda-gente”.
Estou lendo e marcando as palavras úteis para o meu caso, os sentidos figurados aproveitáveis nesta “nossa” literatura, etc. ainda estou no “A” e já tenho belos achados. É um verdadeiro mariscar de peneira. Deves fazer a mesma coisa, e depois trocaremos as notas. (1:239-241)
2. Meu processo é outro: quando topo palavra que desconheço ou conheço mal, ou que também se usa em sentido diferente do familiar, anote-a com toda a frase em que está metida, frase em que lhe entremostra a significação e a propriedade. Assim, já de começo o espírito pode utilizar-se da aquisição – é uma espécie de apresentação da nova personagem à inteligência, e passo primeiro para a familiarização entre ambos e conseqüente assimilação. Anotar apenas a palavra é perda de tempo; só a mão lida com ela, e o faz maquinalmente, como copista automática que obedece a uma ordem do cérebro; este não trabalhou para a fixação da novidade, limitou-se apenas a dar ordem à mão para que a grudasse no papel.
Já percorri este ano as primeiras 700 páginas do Aulete e breve chegarei ao fim, porque está me agradando o passeio. Mas depois do enriquecimento vocabular é preciso que aprendamos a bem gastar o acumulado, senão viramos nouveaux riches e insensivelmente nos metemos a ostentar riqueza vocabular. Machado de Assis é o mais perfeito modelo de conciliação estilística; seu classicismo transparece de leve e nunca ofende os nossos narizes modernos. Como vivemos neste século e neste continente, não podemos, sem uma hábil e manhosa tática, usar expressões lusitanas e de tempos já muito remotos. (1:258-259)
3. O que mais aprecio num estilo é a propriedade exata de cada palavra e para isso temos de travar conhecimento pessoal, direto, com todos os vocábulos, um por um, em demorada, pensada e meditada vocabulação dicionarística. Só pelo conhecimento exato do valor de cada um é que alcançaremos aquela qualidade de estilo.
E quando circunlóquio, quanto rodeio, esse conhecimento vocabular nos evita! Em vez de: “F. correu os olhos em torno da mesa” como fica melhor dizer: “F. circunvagou os olhos”. Mas no uso dum vocabulário abundante torna-se mister o mesmo hábil discernimento de boa aplicação que distingue os Camilos dos Camelos – dos camelos plumitivos à Macuco, o fundador do Profundismo... É necessário aprender a bem gastar, como faz o rico inteligente, que gasta simultaneamente em proveito próprio e alheio, não à moda do perdulário inepto. O Macuco aprendeu um dia a palavra “apropinquar” escreveu toda uma história só para ter ensejo de empregar dez vezes o grande achado – e aproprinquou-se mas foi das cocheiras do Brás.
Não conheço melhor modelo que Machado de Assis. Camilo ainda me choca, é muito bruto, muito português de Portugal e nós somos daqui. Machado de Assis é o clássico moderno mais perfeito e artista que possamos conceber. Que propriedade! Que simplicidade! Simplicidade não de simplório, mas do maior dos sabidões. Ele gasta as suas palavras como um nobre de raça fina gasta a sua fortuna e jamais como o parvenu, o upstart, que começou vendeiro de esquina e acabou comprando um título de barão do papa.
Os Macucos adquirem vocabulário unicamente para fazer alarde da “riqueza vocabular”; os Machados, para da riqueza reunida só gastarem os juros. E, pois, espero terminar meu passeio pelo país dos vocábulos para em seguida retomar a tarefa dos contos. (1:263-264)
4. Mandei vir Noites de Insônia, de Camilo, 12 volumes, e ainda apanhei uns em Taubaté. E leio anotando os jeitos. Palavras novas não me interessam. A grande coisa não é possuir montes de palavras; se assim fosse, um dicionarista batia Machado de Assis. É saber combinar bem a palavras, como o pintor combina as tintas e o músico o faz às notas. Beethoven só dispunha de sete notas – e com elas abalou o mundo. Corot só jogava com as sete cores do arco-íris, que aliás são três. Dêem cem notas a mim, que sou um cretino em música, e dêem duzentas cores ao Jonas de Barros, que é em pintura o que sou na música, e não sai nada!. (1:273)
5. Voltam as tuas notas. Não é bom o sistema de colher pétalas de flores, em vez da flor inteira e com cabinho. Quem quer apenas vocábulos exóticos ou raros, não precisa ler autores, é ler o Aulete. Lá estão todos, e já anotadinhos. Adote o meu processo, que é o único. (1:274-275)
6. Na tua carta levas ao extremo o estudo camiliano. Leva-lo ao extremo de esfarela-lo num glossário metodicamente disposto para a rebusca de frases feitas. Condenas aquele meu terreirinho limpo caiam as sementes que o vento traz. Com o teu sistema de glossário, sabe o que acontece? Tornamo-nos uns Camilos enfezados, uns puros camelinhos, quando o que eu quero é que de Camilo tu saias mais Rangel do que nunca e eu saia bestialmente Lobato – embora sem as brocas e lagartas para as quais o melhor veneno é justamente Camilo.
O meu processo é anotar as boas frases, as de ouro lindo, não para rouba-las ao dono, mas para pegar o jeito de também tê-las assim, próprias. Dum de seus livros extraí 60 frases de encher os olhos. Não releio mais esse livro – não há tempo – mas releio o compendiado, o extrato, e aspiro o perfume e saboreio. Formo assim um florilégio camiliano do que nele mais me seduz as víceras estéticas. E não discuto nem analiso, porque seria fazer gramática, do mesmo modo que não analiso botanicamente um cravo ou uma gostosa laranja mexeriqueira. Cheiro um e como a outra.
Resumindo: meu plano é ter uma horta de frases belamente pensadas e ditas em língua diversa da língua bunda que nos rodeia e nós vamos assimilando por todos os poros da alma e do corpo. Um jardim de flores simpáticas à nossa estesia inconsciente. No meu passeio pelas Vinte Horas de Liteira apanhei isto: Um corujão berrou no esgalho seco de um sobro. Detive-me; fiz pouso nessa frase enchedora de olhos e ouvidos. E não anotei, porque anotada ficou para sempre em meu cérebro. Não a analiso, não a comento; ponho-a apenas em uma lapela do cérebro, como pus naquele prego um ninho de beija-flor encontrado no barranco. Se Camilo houvesse dito: Uma coruja piou no galho seco de uma árvore, eu teria deixado no barranco esse ninho de beija-flor. O “berrou” é que me seduziu. Toda vida, para toda gente, as corujas piam – só em Camilo aparece uma que berra. Lindo!
Filosofando: coletar modos de dizer, jeitos de expressão afins com esse misterioso quid que me leva a olhar com enlevo para os brincos-de-princesa que vejo pela janela, e com arrepios de asco para uma barata que apareça. E isso apesar de ciência que há dentro de mim dizer que ambos brincos-de-princesa e barata, são duas prodigiosas obras-primas da Natureza.
O para que te convido não vai mais longe desse alegre varejar por Camilo e outros a dentro, saindo de seus livros como quem sai dum jardim, com a braçada de flores que nos caíram no goto. E enfeitarmos com elas o nosso ambiente de trabalho. Pendurá-la pelos pregos, como ao ninho de beija-flor – em vez de herborizá-las num glossário. (Esta palavra me fede). E de vez em quando olharmos os “pendurados”. E sentirmos-lhes o aroma. A velha boemia cenacular, em suma. Nosso estilo – nosso nariz literário – fica assim num banho-maria ambiente. (2:7-9)
7. O negócio de anotar Camilo só convém nas sobre-excelências; do contrário é copiá-lo inteiro. Livro há em que ele é uma roda de fogo de artifício, a chispar fagulhas do começo ao fim. Não cuidemos de quantidade, nem façamos disso tarefa. O meu sistema é lê-lo com atenção e marcar à margem as frases que me encantam e me aproveitam. Depois de terminada a leitura, encosto o livro: mais tarde abro-o e releio as coisas assinaladas – e copio num caderno as que ainda me impressionam. (2:13)
8. Estou convencido de que o vocábulo fora de moda, fóssil ou raro, é “pedra” de banana-maçã. (2:44)
9. Há homens que influem até no vocabulário dos países. Depois de Euclides da Cunha, a palavra “estupendo” passou a ter no Brasil um consumo triplicado – e um sentido euclideano. Não há estupendos em José de Alencar; não há um só estupendo em Machado de Assis. A língua literária no Brasil enriqueceu-se desse adjetivo depois de Euclides – o Estupendo, revelou o estupendo de certos contrastes da nossa tragédia geológica e humana. (6:249)
10. – No alto temos uma cafetíria. Procure dominar o estômago.
- Por falar em “cafetíria”, Mr. Slang – sabe, por acaso, como se formou essa palavra? Vejo a América inteira coberta de “cafetírias”, que todos os brasileiros recém-chegados teimam em pronunciar à brasileira – cafeteria.
- Formou-se como se formam todas as palavras – por necessidade. Um sujeito de New York abriu certo dia um restaurante dum tipo novo lá imaginado por ele. Como não fosse restaurante igual aos outros, vacilou em dar-lhes este nome. Como vacilou em dar o nome de café, porque um café é outra coisa. Em vez de consultar alguma academia de letras esse homem compôs ele mesmo a palavra necessária, tomando como ponto de partida o café. Mudou o final da palavra para indicar que era café e mais alguma coisa, saiu “cafetíria”, como poderia ter saído outra barbaridade semelhante. Conduziu bem a casa, teve sucesso comercial. Abriu outra, atribuindo ao nome pintado na tabuleta alguma virtude mágica. Venceu. Prosperou. Foi imitado – e temos assim a América inteira coalhada de caf’tírias – o restaurante onde o freguês se serve a si próprio. Ignoro como o inventor da palavra a pronunciava; talvez fosse como vocês recém-chegados querem. Mas o freguês americano passou logo a pronunciá-la de acordo com o gênio da língua do país – caf’tíria, e assim ficou. (15:51-52)
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Ver: LÍNGUA 8 (8:101-107)