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TRADUÇÃO

1. Gosto imenso de traduzir certos autores. É uma viagem por um estilo. E traduzir Kipling, então? Que esporte! Que alpinismo! Que delícia remodelar uma obra d’arte em outra língua! Estou agora a concluir um Jack London, que alguém daqui traduziu massacramente. Adoro London com suas neves do Alasca, com o seu Klondike, com os seus maravilhosos cães de trenó.
Ando a fiscalizar as traduções para o Otales, e bom dinheiro perde ele com essa fiscalização! Mas, faça-se-lhe justiça: perde-o com prazer. Prefere perder dinheiro a enfiar no público uma tradução que eu condene. Que outro editor faz isto? Já perdeu assim mais de vinte contos este ano. E o público enguliria do mesmo modo todas as infâmias condenadas, porque o público é o maior boeiro do mundo. Eu às vezes até me revolto, de dar à bola em certos trechos de difícil tradução, ao lembrar-me do que é a média do público. Mas sou visceralmente honesto na minha literatura. Duvide quem quiser dessa honestidade. Eu não duvido. Nem você. (2:327-328)
2. Traduzir não é comer empadinha de camarão. Traduzir é transpor um pensamento expresso na língua do autor por meio dum correlativo expresso na língua do tradutor. E para isso a condição básica é que o tradutor maneje a sua língua com a correção e elegância que a apresentação tipográfica diante do público exige. Mas na amostra da tradução que você me deu “para ver”, o que vi foi língua do Rio Grande em lata, e de nenhum modo língua portuguesa. As palavras são portuguesas, mas enfileirar palavras portuguesas sem a ordem e a elegância gramatical não produz língua portuguesa – produzirá língua do Rio Grande, e inferior à do Leal Santos, porque não é comestível. (4:121)
3. A interpretação literária é o que há de mais profícuo na aproximação dos povos. Só ela suprime as muralhas que a estupidez dos governos ergue. Só ela demonstra que somos todos irmãos no mundo, com as mesmas vísceras, os mesmos defeitos, os mesmos ideais. Se a França tornou-se amada entre nós a ponto de bombear Damasco e esmagar Abd-el-Krim sem que isso arrepie as fibras da indignação, deve-se aos senhores Perrault, La Fontaine, Hugo, Maupassant, Taine, Anatole e quantos mais nos trouxeram para aqui esta sensação da irmandade do homem. Se a Alemanha não se gozou de idênticas simpatias é que víamos os atos de violência dos seus homens de governo e não havia dentro de nós, para atenuar-lhes a repercussão, o coxim de veludo da literatura alemã, bem absorvida como temos a francesa.
Grande serviço, pois, prestam aos povos esses homens beneméritos que trabalham na difusão da literatura alheia em seus próprios países. Estão a preparar os preciosos coxins de veludo, amortecedores dos choques. Criam a compreensão e a tolerância. Demonstram, com a exibição de documentos humanos, que somos iguais, todos filhos do mesmo macaco que rachou a cabeça ao cair do pau. (6:164-165)
4. Traduzir é a maior das tragédias mentais, porque é anular-se um homem da maneira mais absoluta, subordinar sua mentalidade à dum estranho, penetrar um autor como um gás penetra poros, compreende-lo nas mais microscópicas minúcias, decifra-lo no que é indecifrável. E tudo isso sem recompensa de espécie nenhuma, sem nenhuma paga séria, sem nenhum resquício de glória. Esse incomensurável paquiderme de mil cérebros e orelhas a que chamamos “público” nunca tem o menor pensamento para o mártir que estupidamente se sacrifica para que ele possa ler em língua sua uma obra-prima gestada em idioma estranho. (6:253)
5. Os nomes que vimos pela primeira vez como tradutores perdem o prestígio quando o vemos como autores. Há em nós a vaga impressão de que quem traduz não pode criar. (7:50)
6. A tradução literal, isto é de absoluta fidelidade à forma literária em que, dentro de sua língua, o autor expressou o seu pensamento, trai e mata a obra traduzida. O bom tradutor deve dizer exatamente a mesma coisa que o autor diz, mas dentro da sua língua de tradutor, dentro da sua forma literária de tradutor; só assim estará realmente traduzindo o que importa: a idéia, o pensamento do autor, Quem procura traduzir a forma do autor não faz tradução – faz uma horrível coisa chamada transliteração, e torna-se ininteligível... (7:118)
7. Entre os aspectos novos que o movimento editorial criou nestes últimos tempos cumpre assinalar a fúria tradutora. Começou-se em São Paulo a traduzir intensamente e o movimento estendeu-se a outros estados onde também se editam livros, como o Rio Grande.
Começou-se... Sim, começamos agora. Até bem pouco tempo o Brasil só conhecia em traduções Escrich, Ponson du Terrail e Alexandre Dumas. Positivamente só. Jornais gravíssimos davam e redavam em rodapé os romances populares desses autores – e alguns mais avançados inovavam com Heitor Malot e Zamacois e mais coisas. Mas só traduzíamos do francês e do espanhol.
A literatura inglesa, tão rica de monumentos, era como se não existisse. A alemã, a russa, a escandinava, idem. A americana, idem. Um dia um editor inteligente teve a idéia de arejar o cérebro dos nossos eternos ledores de escrichadas e ponsonadas. Aventurou-se a lançar no mercado Wren, Wallace, Bourroughs, Stevenson, e que tais. E foi além. Lançou alguns dos sumos: Kipling, Jack London – e já pensa em Joseph Conrad e Bernard Shaw.
A surpresa do indígena foi enorme. Sério? Seria possível que houvesse no mundo escritores maiores que Escrich e Dumas? Que fora da França e da Espanha houvesse salvação?
Era sim. Havia salvação e o mundo mental revelado pelos livros fez abrir a boca à nossa gente. Foi com verdadeira avidez que o público se atirou às traduções, fazendo que as tiragens se sucedessem num elance imprevisto. Basta dizer que o Rosário de Florence Barclay alcançou uma saída de cinqüenta milheiros, suponho.
A novidade era absoluta. Livros arejados, cinematográficos, de cenário amplíssimo – não mais a alcova de Paris. Almas novas e almas fortes, violentíssimas, caracteres shakespeareanos, kiplinguianos, Jacklondrinos – novos, fortes, sadios. E deliciado com tanto novo, o público passou a pedir mais, mais, mais, até que se saturou, ou antes, que os editores saturaram o mercado.
Só então os leitores começaram a dar tento ao mérito das traduções. Foi verificando que com a pressa de apresentar novidades os editores descuravam da qualidade, dando inúmeras traduções perfeitamente infames. E o público reclamou, ao mesmo tempo que vários autores indígenas bradavam contra o fato de se traduzirem autores de fora enquanto eles permaneciam inéditos.
Realmente era um desaforo. Dar Kipling, Jack London, Dickens, Tolstoi, Chekow e outros quando poderíamos dar Almeidas, Sousas, Silvas, etc. Dar o Lobo do Mar, de Jack London em vez da Mulatinha do caroço no Pescoço do senhor Coisada Pereira, que é grande gênio literário do Pilão Arcado, onde vive pálido como cera e todo caspas. E eles apelaram para o governo. Em Pilão Arcado, governo ainda é palavra mágica.
Quanto à reclamação do público, os editores estudaram o caso e verificaram que havia razão na queixa. Traduzir é a tarefa mais delicada e difícil que existe, embora realizável quando se trata da passagem de obra em língua da mesma origem que a nossa como a francesa ou a espanhola. Mas traduzir do inglês, do alemão ou do russo, equivale de fato a quase absurdo. Ocorrerá fatalmente uma desnaturação.
Se a tradução é literal, o sentido chega a desaparecer; a obra torna-se ininteligível e asnática, sem pé nem cabeça, o que não se dá com uma tradução literal do francês ou do espanhol.
A tradução tem que ser um transplante. O tradutor necessita compreender a fundo a obra e o autor, e reescreve-la em português como quem ouve uma história e depois a conta com palavras suas.
Ora isto exige que o tradutor seja também escritor – e escritor decente. Mas os escritores decentes, que realmente são escritores, isto é, que possuem o senso inato das proporções, esses preferem e têm mais vantagens em escrever obras originais de que transplantar para o português obras alheias. Os editores pagam menos e o público não lhes reconhece o mérito. Daí um impasse.
Mas o caminho é esse. Os editores têm que resignar-se a sacrificar a quantidade de traduções pela qualidade; e têm de procurar por todos os meios descobrir bons tradutores. Nos países mais civilizados a função do tradutor está equiparada à do escritor. Vemos Baudelaire receber em França tantos aplausos pelas suas traduções de Edgard Poe como pelos versos. E ainda agora no “Mercure de France” há várias páginas de necrológio sobre o recém-falecido Luiz Fabulet, cuja atividade literária se resumiu a transplantar para o francês a obra inteira de Rudyard Kipling.
Os tradutores são os maiores beneméritos que existem, quando bons; e os maiores infames, quando maus. Os bons servem à cultura humana, dilatando o raio de alcance das grandes obras. Baudelaire e Fabulet, por exemplo, dilataram o raio de alcance da obra de Poe e Kipling, tornando-a acessível ao mundo latino ou pelo menos à parte do mundo latino que joga com a língua francesa. Sem eles ou sem outros que fizessem o mesmo, Poe e Kipling ficariam limitados ao mundo inglês.
A literatura dos povos constitui o maior tesouro da humanidade, e o povo rico em tradutores faz-se realmente opulento, porque acresce a riqueza de origem local com a riqueza importada. Povo que não possui tradutores torna-se povo fechado, pobre indigente, visto como só pode contar com a produção literária local.
Quatro línguas já merecem o nome de universais – a inglesa, a espanhola, a francesa e a alemã, porque nela já se acha vertido tudo quanto todos os outros povos produziram de primacial. Dentro delas um homem tem ao alcance pelo menos a nata do grande tesouro. Já a nossa língua, língua de pobre, só teve até bem pouco tempo o que o homem de Portugal e do Brasil produziu – bem pouco. O grande tesouro comum da humanidade nos era inacessível na nossa língua – e daí a necessidade para os cultores de estudarem outros idiomas.
Toda a antiguidade greco-romana ainda nos está fechada. Não temos a nossa tradução de Homero, de Sófocles, de Heródoto, de Plutarco, de Ésquilo. Como não temos Shakespeare, nem Goethe, nem Shiller, nem Molière, nem Rabelais, nem Ibsen. Falta-nos quase tudo, e isso por causa da vida indigente que ainda é a nossa. Sem enriquecimento material, sem desenvolvimento econômico, um povo não pode enriquecer-se espiritualmente.
Bem consideradas as coisas, um homem que apenas conheça o português fica com o seu horizonte espiritual deveras trancado. A norte limita-se ele com Herculano, Camilo, Castilho e a récua dos freis quinhentistas absolutamente vazios de idéias; a sul limita-se com Eça, Ramalho, Antonio Nobre, Fialho, etc; a leste limita-se com Machado de Assis, Nabuco, Euclides da Cunha, José de Alencar; a oeste com imortais da Academia de Letras e alguns iconoclastas do futurismo. Com tantos limites, o pobre diabo acaba sentindo-se numa verdadeira prisão mental.
Daí a avidez com que a nossa gente unilingüista se atirou às traduções dos romances ingleses e russos dados pelos editores atuais. É a avidez de ar, de luz, de amplidão, de horizontes. Recebe essas obras como outras tantas janelas abertas numa prisão escura. E, pois, benditos sejam os editores inteligentes que descobrem bons tradutores, e malditos sejam os que entregam obras primas da humanidade ao massacre dos infames “tradittores”. (7:125-130)
8. Há muitas maneiras de ler. Talvez que a mais profunda seja a de quem verte um livro para outra língua. O tradutor é um escafandrista. Mergulha na obra como num mar; impregna-se dum pensamento concretizado de um certo modo – o estilo do autor – e lentamente o vai moldando no barro de outro idioma, para que a obra não admita fronteiras. Sem esses abnegados trabalhadores, a literatura ficaria adstrita a pátrias, condenada a limites muito mais estreitos do que os permitidos pela sua potencialidade.
O homem de uma só língua, que entra na biblioteca e pode ler o Banquete de Platão, os pensamentos de Confúcio, os Anais, de Tácito, a Viagem Sentimental de Stern, o Fígaro de Beaumarchais, a Guerra e Paz de Tolstoi, o D. Quixote, o Coração de Amicis, o Fausto e tanta coisa, admira os autores mas não tem uma palavra para a formiga humílima – o tradutor – graças à qual aquelas obras lhe caíram ao alcance.
Para o tradutor não haverá nunca remuneração econômica, nem glória, nem sequer a gratidão dos homens; só há insultos quando não faz o trabalho perfeito. Não obstante, a coisa suprema do mundo mental: universalização do pensamento – é obra deles. (9:237)