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ESCRITORES: CAMILO CASTELO BRANCO

CAMILO CASTELO BRANCO: 1. Confundes bobamente duas coisas: clássicos e Camilo. Camilo não é clássico no sentido gramaticóide do termo; e para afundarmos os dois no mar do classicismo, nunca te convidaria eu, porque os aborreço sobre todas as coisas. Convidei-te para o passeio através de Camilo como remédio contra o estilo redondo dos jornais que somos forçados a ingerir todos os dias. Camilo é laxante. Faz que eliminemos a "redondeza". É a água limpa onde nos lavamos dos solecismos, das frouxidões do dizer do noticiário — e também nos lavamos da adjetivação de homens copados como Coelho Neto. Camilo é lixívia contra todas as gafeiras. E além desse papel de potassa cáustica, ele nos dá essa coisa linda chamada topete. Camilo nos "desabusa", como aos seminaristas tímidos um companheiro desbocado. Ensina-nos a liberdade de dizer fora de qualquer forma. Cada vez que mergulho em Camilo, saio lá adiante mais eu mesmo — mais topetudo. E o topete filosófico eu o extraio de Nietzsche. Agora estou fazendo uma viagem com o meu topetudo estilístico em Vinte Horas de Liteira. (2:10-11)
2. Quanto a Camilo, vejo-o sempre o mesmo e único. E cada vez mais me dá Eça a idéia dum creme Chantilly, muito gostoso. Camilo é rosbife quase cru, vermelho. A semana passada li dum fôlego Agulha em Palheiro. Que garbo! É um romance saído de dentro dele como um rato sai dum buraco. É um jato. E sabe que anda em Portugal um vivo movimento de reação pró-Camilo? O câmbio do Eça cai, e como não há nenhum "grande novo", o remédio é retroceder umas estações e parar em Camilo. Amiudam-se os estudos camilianos. Recebi mais um de Pimentel e há dias o Jornal do Comércio trouxe colunas sobre ele.
Eu de mim não quero outro mestre. Leia isto:
"As portuguesas caem de maduras, ou porque a lascívia as sorveu antes de sazonadas, ou porque vêm ao chão, de velhas. As indígenas são pardas como pão de rala, têm uns palavriados que travam a ervilhaca e gelam os mais escandescidos desejos. São carnes de ralé onde amor não acha em que pegue. Lembra-se (é de Camões que Camilo fala) das lisboetas que chiam como pucarinho novo com água."
Que desgarre!... "chiam como pucarinho novo com água..." e mais adiante:
"Mas entrevejo na cerração de três séculos que o poeta, na apoteose de Albuquerque terribil e do Castro forte, elaborando a epopéia que sagrou a idolatria de semi-deuses uma falange de piratas, escrevia com as mãos lavadas de sangue inocente do índio, a quem os conquistadores apenas concediam terra para sepultura como precaução contra a peste dos cadáveres insepultos, quando não exumavam os dos reis indígenas, na esperança de que lhos resgatassem com aljofar e canela. Façanhas de Camões não sei decifrá-las nos seus poemas; eles, os poemas, só por si sobejam na sua história como ações gloriosíssimas".
Isto, Rangel, não é dizer passado por alambique, mas mijado! Nada aqui da impecabilidade estafante de Flaubert, anti-natural, anti-humana, anti-artística, toda ficelles, receita e formas. As ficelles do Eça também transparecem muito, e começam a enjoar quando percebemos que são ficelles. Camilo é floresta virgem, irregular, com perambeiras e espigões, com taquaruçus, bromélias, borboletas de azul celeste em vôos boiados, e mamangavas tremendas e sapos que espirram leite venenoso. Eça é um jardim francês daqueles que Le Notre desenhava. É possível levantar a planta dum jardim, mas quem tira a planta duma floresta virgem — dum Camilo? Eu recomendo a Boemia do Espírito aos que sofrem de lazeira de estilo. (2:25-26)
3. Em Camilo noto curiosa evolução: nos últimos livros, velho e doente, é ele um feixe de ossos amarrados por uma rede telefônica de nervos mais vibráteis que cordas eólias. Seu estilo reflete o Camilo do fim. Não há ali células de gordura. Nada balofo, só durezas. Veja na Boemia do Espírito:
"Se o adversário Rodrigues almeja desforrar-se da justiça dura e rude com que o incomodo, haja-se por vingado na repugnância com que lhe replico. Tenho pesar de haver sacudido com a pena e a luva que me atirou. Enganaram-me uns fementidos jornais que por aí inculcaram o teólogo com a adjetivação encomiástica das pílulas de família. Caluniaram-no. A sua ignorância dava-lhe jús a uma sossegada irresponsabilidade em coisas de letras. Colocaram-me nesta atitude de lutador pimpão, em mangas de camisa, obrigado a defender-me das vaias de ignorantes ao cabo de 36 anos de estudo apenas interrompido pelas dores de todas as espécies e pelas prostrações das longas vigílias, etc.
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Pelo contrário, escrevo com a tristeza dos velhos que, na penúltima estação da viagem, olham para o passado e não avistam na via dolorosa clareira onde não avulte um grupo de miseráveis. A Teologia era a única potência que me tinha deixado passar sem pedrada, mas afinal nem essa... Ela depois disso raros filhos desova que não venham gafos de oftalmia purulenta que os não deixa encarar as frechas aflitivas da luz. Alguns, porém, conheço com a íris normal, sã, remirando a fito todos os esplendores da ciência, etc.
Temos aqui 13 adjetivos para 198 palavras — 6%! Não pode haver linguagem mais virilizada, mais enxuta, mais ossos e nervos — e gordura nenhuma. Nada amolengante. Lembra vergalho de boi estorricado ao sol. Só 13 adjetivos e todos matematicamente exatos. Vejamos Fialho:
"Tomou as mãos do agonizante, um mármore molhado. Está a amanhecer lá fora, e os cinzentos azuis dessa madrugada de inverno entram no quarto como albescências funérias que me espantam."
Temos aqui 3 para 30 palavras — 10% e em descritivo!
O pior vezo nacional é cevar o estilo como se cevam porcos. O ideal literário parece que é a banha. Está gordinho? Ah, então está lindo.
Toca jejuar até emagrecer às justas proporções — jejuar de adjetivos modificatórios. São a gafa. O qualificativo é tinta boa, viva, crua; o modificativo é água diluente, dessorante: "Radiava um céu azul"; o azul está forte, na pureza com que sai dum tubinho do Ceruleum Blue do Windsor & Newton. Posponha-se-lhe um "desmaiado".
Radiava um céu azul desmaiado...
Adeus, vigor! Junte-se mais um "diafano",
Radiava um céu azul, desmaiado, diafano...
e do Portugal nervoso de Camilo saltamos para o Brasil toucinhento de João do Rio. Já é aquarela, água rala, água parada, pintura de moça. Dirão: "É um gênero como outro qualquer." Sim, mas que não sobrevive, como sobrevivem os fortes claro-escuros de Rembrandt — e o tudo na biologia é sobreviver. O que já nasceu desbotado, continua a desbotar pela ação do tempo. Cumpre notar que a coisa descrita perde, na passagem do cérebro do autor para o do leitor, uns 30% de força pictural, como a corrente elétrica perde de intensidade na passagem do gerador para o quadro de distribuição. (2: 52-54)
4. O mérito de Camilo está em que nos ensina todas as acrobacias da língua, e nos mostra todas as "bravuras" e ainda nos diverte. Quando se põe a troçar é enorme! Quando vira palhaço e vai descambando para o reles, sai-se com um disparate de gênio e salva tudo... Em matéria de diálogos de gente do povo, não sei de nada igual. Veja isto, do Onde está a Felicidade?
O João Antunes, por alcunha o Cágado, natural de Lixa, viera rapazito de 12 anos para Lisboa, conduzido pelo seu tio materno, o tio Antonio Cabeda, com destino de embarcar para o Brasil. Achando-se no cais da Ribeira com o dito seu tio, admirando o tamanho do iate, que o bom Antonio Cabeda denominava uma anau de guerra marítema, com grande espanto do rapaz chegou-se a eles um homem gordo, de jaqueta de ganga amarela e chinelos de ourelo, perguntando ao tio Cabeda se o rapaz embarcava.. À resposta afirmativa, disse o homem gordo, mandando que se cobrissem os admiradores da anau de guerra marítema, que era dono de duas lojas de mercearia na Fonte Taurina, e muito desejava manter em uma delas um rapaz que tivesse boa pinta para o negócio.
— A respeito de pinta, ela aqui está como se quer, disse o tio, levantando com orgulho a cara do sobrinho, como o troquilhas que mostra os dentes duma cavalgadura.
— Não tem mau olho, não, disse o merceerio. Quer V. deixá-lo comigo? O Brasil é em toda parte. Tenha ele cabeça e boa aquela para o negócio, que em toda parte se arranja dinheiro
— Tu queres ir ou ficar, rapaz?, perguntou o tio, atirando com a perna direita sobre o pau de lodo.
— Eu... resmungou o rapaz, fazendo em torcidinhas a borda do barrete.
— Vá... É decidir! Isto é maré de encambar enguias. Assim como assim, este senhor diz bem: o Brasil é em toda parte. Queres ou não queres?
— O que vosmecê quiser; eu antes queria ficar aqui mais perto da minha gente. Acho que o Brasil é por aí abaixo muito longe. Etc.
Qual é o naturalista que apanha viva assim uma cenazinha destas, de todos os dias? Eis porque incursiono nos outros, mas em matéria de língua minha base de operações é Camilo. (2:65-66)
5. Eu continuo a não achar salvação fora de Camilo, a ponto de não conseguir ler Os Maias. Já o Machado de Assis eu o alterno com Camilo. Donde concluo que em matéria de estilo há dois, Camilo lá e Machado aqui. Todos os demais cansam. Agradam muito no começo, como um pedaço de bolo inglês, mas acabam enfarando. Camilo e Machado são como o pão com manteiga — coisas de que ninguém enjoa nunca.
Rangel, não abandones o Camilo! É um par de halteres, um trapézio, uma barra fixa, um campo de futebol, um barco de regata ou um salão de ginástica dos mais completos onde apuramos todos os músculos da língua. A razão de haver eu parado de escrever ‚ que estou amolando o estilo no rebolo camiliano. Se me pega o fio, volto à arena. Se não, paciência. Fico de fora, no sereno. (2:98-99)
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Ver: VOCÁBULOS 7 (2:13