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LITERATURA BRASILEIRA

1. A identidade de formação dos povos americanos dá à sua história literária um singular aspecto de família. Lendo esse monumento de erudição e crítica que é a História de la Literatura Argentina, de Ricardo Rojas, e a Pequena História da Literatura, do finíssimo Ronald de Carvalho, temos a impressão de ler capítulos de uma obra ainda não escrita: a História Geral da Literatura Sul-Americana.
Ambos estudam fenômenos de evidente paralelismo, produzidos na Argentina e no Brasil.
Isso é natural. Dada a semelhança de formação dos dois países e dado o paralelismo evolutivo das civilizações, não podiam suas respectivas literaturas submeter-se a leis diversas.
E até a pergunta formulada na Argentina – temos literatura? – à qual o grande Mitre respondeu pela negativa, se bem que admitindo a existência de materiais que a formariam no futuro, repetiu-se várias vezes no Brasil.
Cá e lá, durante os primeiros séculos, não passamos de mero transplante ibérico em terras americanas; e se houve rápida diferenciação na vida social, muito lentamente se produziu a mesma na vida literária.
Embora extremamente nacionalistas e fundamente brasileiros de coração, nossos primeiros poetas conservaram-se portugueses de espírito. A língua de seus versos, por exemplo, é rigorosamente portuguesa, sem nada da língua nova que se elaborava no seio do povo; as imagens empregadas, o estilo, o torneio da frase, tudo era português, embora fosse empregado para hostilizar as coisas lusitanas.
A reação começa com os indianistas românticos, fase que marca as primeiras manifestações de uma inevitável disparidade: povos diferentes, língua diferente, literatura diferente.
A boa acolhida que o público dispensou às obras dos indianistas indicou bem claramente a senda a seguir:
- Se quereis ser lidos, dai-nos coisas novas de bom cunho nacional.
Até aqui, pois, houve timidez por parte dos precursores. Libertaram-se do classicismo de origem lusitana dominante até então; assinalaram caminhos novos; lançaram as bases de um grande edifício. Mas não foram além. Não foram suficientemente fortes as reservas de personalidade desses escritores para leva-los a todas as conseqüências da grande idéia. E pode-se ainda afirmar que se se lançaram por tal caminho foi por espírito de imitação, ao ver florescer em França e nos Estados Unidos o indianismo de Chateaubriand e de Cooper. Foi erro dos indianistas substituir a escola estrangeira por outra escola estrangeira disfarçada de nacional. Seus índios não são índios daqui; são gregos cobreados, romanos de tez bronzeada, ficção universais, tipos arbitrários sem validade alguma.
Gonçalves Dias nos legou verdadeiras obras primas nesse gênero, como o maravilhoso poema Y-Juca Pirama, a única página verdadeiramente épica da poesia brasileira. Na novela, Alencar deu um passo adiante. Estilizou a seu modo o indianismo, com um encanto raro, de forma personalíssima e já fortemente brasileira. E tal foi a força de suas criações, que conseguiu popularizar-se e ser lido como nenhum outro escritor. Por esse motivo o consideramos como verdadeiro criador da “literatura brasileira”, coisa muito diferente de literatura portuguesa feita no Brasil.
Alencar introduziu a nossa paisagem na novela; aboliu as velhas imagens de importação – o rouxinol, o lobo, o leão, o lírio, e introduziu a “graúna”, a “onça”, o “manacá”. Alencar reabilitou, em suma, a cor local, embora obedecesse mais à sua imaginação do que à natureza. Foi um grande reformador que teria renovado mais, se, como político que era, não houvesse acreditado de boa política transigir em parte com as idéias dominantes. Viveu no coração do povo e nele vive até hoje através de suas criações magníficas de beleza ( embora falsa ): Peri, Ceci, Iracema.
Desse mesmo período sobrevivem dois nomes: Macedo e Bernardo Guimarães, novelistas ambos. Também eles se popularizaram e são lidos até hoje porque souberam aplicar a inovação de Alencar na novela da vida das cidades e das povoações rurais. Sem brilho do primeiro, imperfeitos de forma, insuficientes de estilo, frouxos e insípidos, sobretudo Macedo, nada deixaram que valha o Guarani ou Iracema. Medíocres como artistas, salvou-os seu nacionalismo e o terem escrito na língua da terra, para uso da gente da terra. Na poesia, Castro Alves passou como uma torrente eletrizante, conquistando no coração do povo um lugar de onde ninguém o tirou até hoje. Ao lado deles, um moço, Casimiro de Abreu, fez-se poeta da saudade e do primeiro amor. Tal sentimento pôs em seus versos, que, em um país de poetas como é o nosso, ainda é Casimiro o suave intérprete das inquietudes sentimentais da juventude.
Transcorreu depois uma fase literária fecunda em que se levantaram vários nomes. Taunay lança Inocência, uma verdadeira obra-prima, sem defeitos de forma nem de composição, e tão filha do ambiente brasileiro que foi a escolhida para que, traduzida em vários idiomas, fosse a plenipotenciária, no estrangeiro, de nossa literatura.
Machado de Assis chega a nível nunca alcançado. Seus livros formam um colar de obras primas dignas de figurar entre as obras primas da literatura universal. Converteu-se em ídolo, em ponto de referência, em orgulho nacional. Mas não conseguiu penetrar na alma do povo. A amarga ficção do seu humorismo, a estrema finura de sua psicologia e do seu pensamento, o colocaram acima do país. Neste, lhe coube a eterna sorte dos que, deste Sterne, cultivam o “humor”. O povo os repele, porque o povo não gosta de ceticismo. O “humor” destrói e o povo necessita de construtores. Deste modo, Machado de Assis representa algo extra-Brasil, estrela de um céu estranho desgarrada no meio de nosso sistema estelar.
Na poesia é Olavo Bilac quem alcança o cimo da perfeição, sem lograr tampouco vibrar de acordo com a alma do povo. É outro grego. E é romano, é um Cícero esse fenomenal Rui Barbosa, considerado força da natureza, expressão última, canto de cisne da língua portuguesa, condenada no Brasil a deixar o lugar à língua brasileira, sua filha.
Dia a dia se acentua mais este fenômeno: o povo só lê, só apóia, só populariza a quem escreve a língua que ele fala. O extremado apego ao velho idioma fez novelistas eminentíssimos e fecundos, como Coelho Neto, que não gozaram, porém, do apoio público a que tinham direito. E a vitalidade da atual literatura, sua expansão, sua penetração, dependem cada dia mais da adoção do “português bárbaro”, que é o idioma do povo brasileiro. O que aconteceu com o latim na Ibéria, dando origem ao idioma lusitano, está acontecendo no Brasil, no conflito daquele com o brasileiro nascente.
Outro obstáculo oposto à expansão de nossa literatura na alma do povo, provém da fascinação que as elites sentem pelas letras francesas. Artistas de cultura unilateral, eternamente voltados para a França, como se o mundo fosse a França, deixaram de auscultar as ânsias estéticas da raça, para seguir servilmente os movimentos franceses. Daí nosso grande parnasianismo que o povo repudiou; e na novela de um psicologismo enfermo que nunca conseguiu interessar a ninguém. Explica-se deste modo a causa pela qual, apesar do brilho da literatura brasileira, a nação tão escassamente se interessa por ela, salvo os casos em que o escritor prescinde dessas influências malsãs e ressoa em harmonia com a alma popular.
Quem havia de revelar esta consonância? Que havia de assinalar este caminho de Damasco a nossos homens de letras? Um engenheiro que não fazia profissão de letras: Euclides Cunha. Seu livro Os Sertões estalou como uma bomba e, por motivos muito simples, teve maravilhosa influência. Euclides não é português, nem francês, nem parnasiano, nem psicologista, nem satélite de astro algum. É uma fortíssima personalidade que soube ver e teve o valor de contar o que viu. Abaixou-se até o solo e examinou a terra; depois examinou o homem ao natural, e passou à tragédia deste homem em relação à terra. Habituados a uma mentira convencional que a literatura vinha perpetrando, penetrou fundamente essa estranha e personalíssima maneira de encarar os homens e as coisas de seu país. E de seu livro, pleno de fulgurações de um genial impressionismo, surgiu algo novo, algo com uma diretriz fecunda que vai dar imenso brilho a nossas futuras letras. O livro de Euclides disse:
- Sigam-me. Apalpem a terra, auscultem-na, vejam como os homens estão determinados por ela. E façam arte que seja a própria terra e o próprio homem, seu filho, vistos pelo nosso personalíssimo temperamento. Só assim interessais o país, sereis lido e realizareis nele a sagrada função que há de exercer o artista.
A lição de Euclides frutifica já. Dia a dia é mais abundante a corrente dos que antes de criar uma obra, abrem-se a todas as impressões ambientes e dão corpo às vagas ansiedades estéticas de nosso país. Desdenhosos das sendas já trilhadas, realizam seu pensamento em obras fortes, libérrimas, personalíssimas, sem cuidado do português que lhes pode fiscalizar o idioma, nem dos Albalat que lhes dão moldes de estilo.
Na Argentina, foi Sarmiento quem exerceu uma função comparável à de Euclides da Cunha. Facundo é uma visão maravilhosa, é uma lição fecundíssima. É a verdadeira bíblia da literatura argentina. Não há caminho verdadeiro que ali não esteja indicado, e erra quem dele se aparta. Esses dois livros dizem uma coisa só: arte é verdade. Ou como dizia Aberto Dures: toda preocupação de beleza é nociva à arte. Enquanto detivermos os olhos nos países de cultura mais avançada e adotarmos critérios de beleza em moda neles para adapta-los aos nossos, nossa arte será um pueril arremedo, sem força para subsistir mais que o período de duração dessa moda. No dia, pois, em que tivermos a bela coragem de fazer-nos intérpretes da dor, da alegria, dos anelos, das aspirações vagas e de quanto sentimento passa pela alma de nossa gente, nossa literatura apresentará o estranho fulgor com que se apresentou nas letras universais a literatura dos Tolstoi e dos Dostoyewski. (10:3-9)
2. Tem sido notado, desde vários anos, que o romance como forma literária, vem sendo quase abandonado no Brasil, onde já se si é escassa a produção de livros relativamente à população e ao que se dá em alguns outros países do continente. Efetivamente, dentre os poucos volumes aparecidos de tempos para cá, merece o nome de – livros – raríssimos são os que encerram um romance, com os característicos bem definidos desse gênero.
Salvante alguns livros de Coelho Neto, de Afânio Peixoto, de Lima Barreto, de Xavier Marques, Veiga Miranda, Canto e Melo, e um ou outro mais, a grande maioria dos volumes que aí surgem, quando não são obras didáticas, são obras poéticas. Esses os dois grandes mananciais literários no Brasil. Afastados, deixam minguadas porcentagens de obras em prosa de intenção meramente artística. Nem se compreenderia bem como, assim sendo, existia aí uma Academia de Letras de largo sodalício, cujas poltronas estejam sempre tomadas e a cujo limiar haja sempre uma turma de candidatos aos lugares porventura vagos...Não se compreenderia se não soubesse que a literatura no Brasil é mero diletantismo, a que só por irresistível pendor natural se entregam sonhadores, os quais mais naturalmente propendem para o verso, propício aos sonhos e fantasias, que para a prosa, mais amigas das realidades. No Brasil, só pratica a literatura, verdadeiramente, quem, dispondo de meios de vida seguros, tem algum tempo a perder. A literatura não é uma carreira de que alguém possa viver, mais ou menos gloriosamente. É, por assim dizer, um esporte. Daí o acerto com que age a Academia em instituir prêmios para os novos e desconhecidos, concitando assim à produção os estudiosos, uma vez que os literatos oficiais de que ela se compõe, com poucas exceções, não julgam os tempos propícios à elaboração de livros estritamente literários. (10:10-11)