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LÍNGUA

1. E há a língua. Acho que nisso de língua a coisa é a mesma que nas argamassas físicas. Se os ingredientes não forem de primeira ordem, bem limpos de impurezas e misturados nas exatas proporções, o cimento não pega, o reboco falha – e a obra esboroa-se antes do tempo. Contra o reboco o que atua é a chuva, a intempérie, a erosão natural; na obra d’arte é a crítica. Quantos escritores clássicos, vazios de idéias como potes sem água, ainda vivem pela língua em que puseram as suas sensaborias! O “são vernáculo”, como é bonito! É como o asseio do corpo e das roupas. O escritor que escreve mal é um porco imundo, um fedorento, chulepento. Não tenha pressa em publicar-se. Olhe os bons exemplos. Não digo o Flaubert, que aquilo também era demais – pura doença; mas os outros limpos. Doze anos levou Rostand a anunciar esse Chanteclair que anda agora bulindo com o mundo e já lhe rendeu um milhão de francos. Valeria a mesma coisa se fosse atamancado em dois meses?
Se você gastou dois meses no borrão dos Bem Casados, leve dois anos no polimento. E para dar comida à febre da criação, pode ir compondo o n. 2 e o n. 3. mas imprimir, só quando estiver flaubertiano! (1:248-249)
2. Parei com as minhas leituras de língua estrangeira. Não quero que nada estrague minha lua de mel com a língua lusíada, que descobri como o Nogueira descobriu a Pátria, e o Macuco o verbo “apropinquar”. E sabe o que mais me encanta no português? Os idiotismos. A maior beleza das línguas está nos idiotismos,e a lusa é toda um Potosi. A parte que as línguas têm de comum é como a estrutura óssea das várias raças humanas, coisa que não varia apreciavelmente; o que as distingue, o que faz o inglês, por exemplo, ser tão diverso do italiano, são as feições, os trajes, os modos e as modas de cada um, isto é, os idiotismos fisionômicos. Note, observe. Fulana, a moça mais graciosa de rosto de todas que enfeitam aí essa tua cidade do Machado, que é que nela a distingue das demais e lhe dá aquela graça especial? O idiotismo com que a natureza a dotou; o narizinho arrebitado, a curva da boca, o modelado do queixo; particularidades essas, todas, que fogem à correção ideal e clássica das linhas dum rosto normal. Por que é o português de Portugal tão superior ao português do Brasil? Porque é muitíssimo mais idiotizado pela colaboração incessante do povo, ao passo que aqui o povo praticamente não colabora na língua geral – vai formando dialetos estaduais como na Itália. (1:272-273)
3. Vai para quatro o número de vezes que me ponho a escrever e estarrece-se-me em meio a pena, tolhida de súbita vergonha. É o caso que leio e leio Camilo, com o afã dum Henry Morgan a remexer as arcas de um galeão espanhol capturado no mar dos Caraíbas. Leio-o e penetro-me de Camilo, ensabôo-me com as riquezas do maior sabedor da língua d’aquém e d’além mar, Algarves e Colônias; e, com a “descoberta” que fiz do que realmente é a língua portuguesa, espanto-me do atrevimento da filha bastarda que vingou vicejar nestas paragens, tomou-lhe o nome e vive a dar-se como sua sucessora!
Num romance de Júlio Verne há um Tiago Paganel, geógrafo de má memória, ao qual sucedeu o caso, que hoje não me espanta, de aprender o espanhol pelo português. Quando deu pelo engano, abriu a boca. Não me espanta porque fiz o mesmo: aprendi por cá uma língua bunda pensando que era a nobre e fidalga língua portuguesa.
Sempre vivi nesse elegante atascal da língua francesa, no qual me cevava de literaturas exóticas, eslava, britânica, escandinava e até hindustânica – sem me lembrar fundo as províncias da literatura pátria. E tão encrostado me pôs o longo patinhar por anos a fio nesse engano ledo e cego, que não creio em cura para o mal. tenho sífilis no idioma, da incurável! Mas é provável que encetando agora o estudo da Grande Língua, aos oitenta anos menos leigo serei de suas louçanias, que hoje. E como ajustado ao intento me pareceu Camilo, a ele me arremeti. Fiz vir um fardel de 50 volumes, que trago (tragar, engulir) em parcelas de meio por dia. E espero encomendas feitas a várias livrarias lusitanas, que me abasteçam de Francisco Manoel, um sujeito que deve valer muitos Stendhais e Taines. E de Almeida Garret, o visconde resgatador de todas as alimárias viscondadas, baronadas, acondadas, marquesadas com que o moderno Portugal atravancou o mundo. E de mais Camilo, Herculano, e Tolentino, e Garção...Que coorte.
E enquanto de todos me não tornar amigo íntimo em diurno e noturno conversar protesto não admitir amizades bárbaras (no sentido romano, isto é estrangeiras). Não me mandes, pois, o teatro francês, que te delicia; muito tempo hei perdido com esses deliciosos pechisbeques – cocadas que atendem ao paladar mas empecem a alma. Tenho deles em Taubaté um metro de estante, e acodem-me os nomes de Robert de Flers e Caillavet, o seu irmão siamês; e Tristan Bernard o Barbinegro, espirituosíssimo e safadíssimo; e Maurice Donnay, todo sutilezas de bordel e salão; e Alfred Capus, consolador do que tudo esperam da Sorte: e Rothschild, e Paul Hervieu, e Lavendan, e Henry Cain, e o Octave Mirbeau do Nogueira, e Henri Bataille, e o traumatizante Bernstein; e Porto-Riche, e Tarride, e o Edmond Rostand do Ricardo...Acho que em França há mais teatrólogos do que espectadores. (1:285-287)
4. Estou procurando casa em S. Paulo para voltar. Sinto-me aqui como bicho fora da goiaba. A goiaba é a língua. Pátria é língua, pura e simplesmente. Fora da língua nativa ficamos como o bicho fora da goiaba. A solidão filológica é pior que a solidão física. (4:220-221)
5. Há alguns meses tive ocasião de ouvir em S. Paulo uma conferência de Lewis Hanke, o inteligente diretor da seção hispânica da Biblioteca do Congresso, de Washington, em missão de “good will” pela América do Sul. Hanke falou em português – mas num português de muita novidade para os ouvintes, uma espécie de “pidgin portuguese”, não só extremamente pitoresco e deleitoso como perfeitamente compreensível. Terminada a conferência, fui cumprimentá-lo e disse-lhe: “Meus parabéns, Mr. Hanke.O senhor, sem o querer, acaba de realizar uma grande coisa: plantou a semente duma língua nova no mundo – o “Português Básico”.
Disse aquilo de brincadeira, mas em seguida, refletindo no caso, convenci-me de que assim como C. H. Ogden criou o maravilhoso instrumento de expressão que é o Inglês Básico, era possível fazer o mesmo para todas as línguas vivas – o que viria simplificar enormemente o estudo das línguas para propósitos práticos.
Nada mais difícil do que aprender uma língua estrangeira, porque o manejo duma língua envolve processos mentais só adquiríveis quando a mamamos no seio materno. O falar em nossa língua nativa torna-se uma função orgânica como outra qualquer – como o respirar, o ouvir, o ver. mas se é assim difícil aprender uma língua estrangeira, nada mais fácil do que assimilar o que nela há de básico, jogando apenas com o vocabulário essencial. Ogden reduziu o imenso vocabulário da língua inglesa a 800 palavras apenas, as essenciais – e por que não aplicarmos o mesmo processo às outras línguas?
O inglês se presta singularmente para o processo básico de Ogden porque é uma língua sem flexões, mas a supressão das flexões nas línguas que as têm, como o português, não faz mal à compreensão – como sem o querer Hanke demonstrou em sua conferência. Se a língua mais espalhada no mundo, como é a inglesa dispensa flexões, isso demonstra que a flexão é uma inutilidade, um atraso, um retardamento de evolução. E no português da roça no Brasil as flexões vão desaparecendo. Um caboclo da roça fala à moda inglesa. Diz, por exemplo: Eu vou; você vai; ele vai; nós vai; vocês vai; eles vai; em vez de dizer como no português gramatical, ou “não evoluído”: Eu vou; tu vais; ele vai; nós vamos; vós ides; eles vão. Temos aqui seis flexões que o caboclo da roça, esse precursor de Hanke, reduz a duas apenas, sem que nenhum modo se faça menos compreendido que um membro da Academia Brasileira de Letras.
A idéia do Basic English é dar ao mundo uma “língua franca”, isto é, aberta a todos – e nada mais possível, sobretudo se a atual guerra tiver desfecho favorável aos povos de língua inglesa. Mas a “basificação” das outras línguas também seria de enormes vantagens para a intercomunicação dos povos, pelo menos enquanto o Inglês Básico não se universaliza – o que ainda não passa de aspiração.
Se tivéssemos esse Português Básico, esta coleção de contos tirados da literatura brasileira certamente alcançaria muito maior número de interessados, e a todos os estudiosos dum idioma sul-americano pouparia trabalho e tempo. Porque o que nesses contos há de mais difícil para o leitor norte-americano são as pequenas nuanças regionais que a “basificação” destruiria sem prejuízo do essencial.
Um exemplo. Certo autor brasileiro começa um dos seus contos assim: “O pegureiro tangia o armento para o aprisco”.Como traduzir isso para o inglês? A tarefa não é fácil, porque exige, primeiramente, que seja vertido para o português atual que se fala no Brasil. Essa tradução em português atual daria isto: “O negro toca o gado para o curral” - porque já não temos “pegureiro” ou pastores, e sim um “negro” ou um vaqueiro que lida com o gado. E não temos “armentos” ou rebanhos, e sim “gado”, em geral. E o verbo “tanger” está restrito ao uso poético (tanger a lira, por exemplo). Em vez de tanger temos o verbo “tocar” (tocar sino, tocar música, tocar galinhas, tocar gado). E não temos mais “aprisco”, palavra também confinada ao uso poético. Temos o “curral”. De modo que a frase do nosso contista, na forma arcaica em que a escreveu, é praticamente intraduzível para o inglês, embora esteja descrevendo a coisa ou a cena mais traduzível deste mundo em todas as línguas existentes, inclusive o Inglês Básico.
O Basic English não passa da “directness” aplicada ao idioma inglês. O Português Básico seria a mesma coisa aplicada ao idioma português. E o tradutor inteligente, o que faz quando passa a literatura duma língua para outra é aproximar-se da “directness”. (5:23-26)
6. Temos duas civilizações, ou melhor, duas “culturas”: a cultura importada, dos que vivem nas cidades, sabem ler e escrever e até livros escrevem! E a “cultura local”, filha da terra como um cogumelo é filho dum pau podre, desenvolvida pelo homem do mato - o caboclo, o caipira, o jeca, em suma. Como o jeca nunca leu nada nem escreve, a sua cultura se foi fazendo ao tipo primitivo, por lentas acessões e restritas experiências locais – e com a transmissão sempre oral. O assunto é grande demais para caber num prefácio; exige livros, já que se trata duma “cultura” de 15 milhões de seres humanos. Mas cumpre-nos aqui considerar a galope um dos aspectos dessa “cultura”: a língua, pois foi na língua do jeca que Nho Bento nos encantou.
Essa língua descende da que os portugueses introduziram e que alijou a língua geral então existente nestes territórios: o tupi-guarani. Ficou a língua portuguesa sendo a língua geral do Brasil e até hoje o é. E por que o é? Porque aprendemos o português de duas maneiras: de ouvido e de leitura. Se o aprendêssemos só de ouvido, como acontece com o jeca, a nossa “língua geral” estaria hoje tão distanciada da língua portuguesa que um português não a entenderia. O que conserva as línguas e impede que caminhem com velocidade excessiva pela tentadora estrada da evolução, é a escrita.
Mas como o jeca nunca soube ler nem escrever, a evolução da língua portuguesa em sua boca se fez a galope. Nho Bento em seus poemas fixa muito bem a língua falada do jeca – e antes que me esqueça: por que os nossos filólogos não extraem a gramática dessa língua do jeca? Que interessante seria!... Quanta “mutação” vocabular, quanta variação da sintaxe, da prosódia, de tudo!... troca do “b” pelo “v”: “cumbersa”, “berso”, “cuverta”... O “lh” substituído pelo “i”: “abeia”, “paia”, “maia” (malha)... O “ou” reduzindo a “ô”: “fumo”, “boto”, “junto”... Quantos aspectos!
Devíamos fazer a gramática da interessantíssima “língua do jeca” como os franceses fizeram a gramática da “língua de oc”; e devíamos ensinar essa gramática nas escolas, lado a lado com a gramática portuguesa, em vez de torturar as pobres crianças com o terrível e inútil latim do senhor Campanema. Ficaríamos assim educados em duas línguas, a geral, ou portuguesa, e uma língua auxiliar, a do jeca. Que vantagem haveria nisso? Oh, grande: - podermos falar gramaticalmente com os 15 milhões de jecas que há no território brasileiro.
A evolução da língua é curiosíssima e inteligentíssima, como todas as evoluções não atrapalhadas pelos breques dos artificialismos. A forma escrita das línguas é um artificialismo tremendamente embaraçador da evolução natural das línguas. Tão emperrado, que no inglês a língua falada está pra cá, e a escrita está pra lá. Mr. Churchill escreve “enough” e diz “inâf”. O jeca teve a felicidade de não saber ler nem escrever, de não se preocupar com a Academia de Letras, de usar dos jornais unicamente o papel – e graças a isso “evoluiu” a língua portuguesa só de ouvido e sempre de acordo com as injunções da “lei do menor esforço” e da “lei da melhor compreensão”. E como suprimiu besteiras inúteis! Os verbos, por exemplo. Nós, por causa da tirania da escrita, ainda estamos com tantas variações pessoais como as tinha o latim. Dizemos: Eu tenho, Tu tens, Ele tem, Nós temos, Vós tendes, Eles têm. Há um grave defeito aqui. Se o pronome já indica a pessoa do verbo, por que indicá-la de novo com a variação do verbo? Redundância, bobagem – perda de esforço. O jeca, muito mais economizador de esforço, porque vive na maior das penúrias, diz: Eu tenho, Vancê tem, Ele tem, Nós tem, Vancês tem, Eles tem. O inglês diz: I have, You have, He hás, We have, You have, They have – e tanto o jeca como o inglês exprimem perfeitamente a “pessoa que tem”, sem estarem latinescamente variando o pobre verbo.
Há uma estranha aproximação do inglês com a língua do jeca, a ponto dum meu amigo, o visconde de Sabugosa, achar que essa língua deriva do inglês e não do português, como o saudoso Álvaro Guerra supunha. O jeca forma os seus plurais com a mesma inteligência e economia do inglês; diz por exemplo, “as casa”, “os home”, “as muié”, em vez de dizer redundantemente como o português, “as casa’, “os homens”, “as mulheres”. O inglês diz, “the houses” ( a casas), “the men” ( o homem ), “the women”( a mulheres ) – a mesma coisa que o jeca, ‘so que invertido. Se pondo apenas o artigo no plural a frase fica perfeitamente clara, para que botar no plural também o substantivo? Pensa com muita razão o jeca e o inglês faz o mesmo raciocínio quando pluraliza o substantivo e não mexe no artigo.
Tudo isto eu diria no prefácio ao livro de Nho Bento, se fosse escreve-lo. E acentuaria que o mesmo direito que tiveram os portugueses de corromper o latim e transforma-lo em língua portuguesa, temos nós, letrados, de corromper a língua portuguesa e transforma-la em “língua brasileira”; e tem o iletrado jeca de “evoluí-la” em outro rumo. Mais cientificamente podemos dizer que a língua portuguesa no Brasil está sofrendo duas variações: uma lenta, da gente da roça segregada do urbanismo, do livro, do jornal e do rádio – o abençoado jeca que tem a sorte de não ler os jornais do governo nem os da oposição e de não ouvir a “Hora do Brasil”.
Quem condena como coisa “errada” o modo de falar ou a língua do jeca, revela-se curto de miolo. Os modos de variação duma língua são fenômenos naturais, e não há erro nos fenômenos naturais. Erro é coisa humana. Temos que estudar essas variações em vez de tontamente condena-las, pois condena-las equivale, por exemplo, a condenar os anéis de Saturno em nome dos planetas que não possuem anéis; ou as caudas dos cometas em nome dos astros suras; ou as sementes da paineira por virem ao mundo envoltas num algodãozinho em nome das sementes de capiá que vêm nuas.
O latim bárbaro dizia, ou devia dizer, OCULAVIT AD ME.
Por uma série de corrupção que os filólogos de bom faro rastreiam, esse latim deu em Portugal a variação: OLHOU BEM PARA MIM. Houve melhoria de expressão; o “bem” está acentuando o modo de olhar.
O jeca ainda melhorou mais a frase e diz, como vemos no “Doce de Cidra”, um dos poemas de Nho Bento: OLHO BEM N’EU. O pobre jeca, sempre de estômago vazio e na embira, forçado a levar ao máximo de suas conseqüências a lei do menor esforço, suprimiu o inútil “u” do “olhou” e dispensou a variação pronominal “mim”, já que só com o pronome “eu” ele (e todo mundo) se arranja perfeitamente bem. (5:29-33)
7. A grande árvore da língua latina, que circunstâncias felizes fizeram viçar ao bafejo das brisas mediterrâneas, depois de completo um glorioso ciclo biológico morreu como morrem árvores – escasqueada, broqueada, parasitada, lenhada e afinal derrubada pelo bárbaro a manejar inconscientemente o machado da evolução.
Mas como árvore que era, morreu perpetuando a espécie nas filhas – esses formosos alporques que constituem hoje a família neolatina.
Bela irmandade! Quatro irmãs opulentas de tesouros literários – a lusa, a italiana, a francesa, a espanhola e a mais humildezinha, aquela entalada no “frege” dos Bálcãs – a rumena. E todas bem enseivadas, ricas, capazes de a seu turno reflorirem em prole magnífica de que sairão as netas da língua latina.
Cá entre nós já vemos grulhar a netinha número um, subvariedade da variedade portuguesa.
É a língua da terra, a língua geral destes vinte e cinco milhões de criaturas que somos. Coexiste em nosso território ao lado da língua-mãe e oficial, a portuguesa. Humilde criança da roça, gerada no seio da arraia-miúda dos campos e do povinho humilde e sofredor das cidades, negam-lhe pão e água os magnatas cortesanescos que fazem roda de peru em torno da rainha metropolitana.
Não obstante a menina cresce, conchegada com amor no seio do povo. Já é ela, a neta, e não mais a avó erudita, quem satisfaz às necessidades de intercâmbio mental dos roceiros, das patuleias urbanas e dos literatos que se dirigem às massas e não às elites. Nela é que o sertanejo ama, o gaúcho bravateia, o retirante chora, o seringueiro lamenta-se, o vaqueiro descanta, o cafajeste pernóstica. Tem já poetas embelecados pelas graças nascentes, e adoradores prosistas, doidos pelo seu linguajar langue, ingênuo, expressivo e vivamente impregnado da cor, do som, do cheiro, do ité, do agreste da terra brasílica.
Crescerá essa menina, far-se-á moça e mulher e sentar-se-á um dia no trono ora ocupado por sua empertigada e conspícua mãe. Imperará no Brasil inteiro – não como hoje, às ocultas e medrosamente, mas às claras, de justiça e de direito; e não na língua falada apenas, mas na falada, na escrita e na erudita. E a velha língua-mãe, que cá vige mas não viça, abdicará de vez em favor da filha espúria que hoje renega, e desconhece, e insulta como corruptora da pureza importada.
Cem anos levará isto? Que importa? Cem, duzentos, quinhentos – isso é nada na vida de um povo. E sinhazinha Brasilina não tem pressa. Menina descançadora, meio “mãe da vida”, ela não olha para o tempo e, despreocupada, folga e ri de pé no chão à beira dos corgos, pelas vendolas de estrada, nos casebres de sopapo, nos sambas, nas catiras, nas farras, na peraltagem infantil das ruas. Convive apenas com o povinho miúdo. Foge acanhada dos grandes, em cujo olhar severo só vê censuras e desprezo.
Tem namorados. Cornélio Pires é um. Valdomiro Silveira é outro. Com eles abre o coração e entremostra o ouro que lhe vai dentro.
Gosta ainda de sapatear quando Catulo sapeca o pinho choroso. Mas apesar destas fugidias entradas no grande palco, a artista Brasilina permanece roceira, e só nos campos reina qual ninfa selvagem – pés nus, vento nos cabelos, sol nas faces.
Era assim. Mas hoje Brasilina está séria, de testa franzida. Veio perturbar-lhe o sossego um homem seu desconhecido, cuja atitude a surpreende.
Amadeu Amaral, em vez de lhe sussurrar palavras de amor ou desferir descantes de viola, estuda-a. E Brasilina, tomada a sério pela primeira vez, escolhida de improviso por um escritor de alto renome que a quer retratar com fidelidade, entrepara, acanhadinha, de pé atrás e dedo na boca. E Amadeu assim a esboça, dos pés à cabeça, em traços firmes, num carvão que marcará entre nós o início duma fase nova de estudos lingüísticos – e esta fecundíssima, verão.
Até aqui a nossa filologia se limitava a bizantinar sobre verrugas da língua-mãe, mexericando com clássicos, fossando como leitoa pulverulentos alfarrábios reinóis. Surgia a polêmica estéril. Cândido de Figueiredo intervinha lá de Lisboa com a palmatória; os gramáticos menores – que os há como carrapatos pelo interior – assanhavam-se; e o ponto debatido em vez de esclarecer-se ficava como novelo que gato brincou.
O estudo único em matéria filológica que nos cumpria fazer não o fazíamos. Era essa da língua nova, a língua que ao país inteiro interessa: o estudo, o retrato fiel da Brasilina arisca que atende às necessidades de expressão de 25 milhões de jecas que somos. Porque, estranha contradição! Falamos à moda de Brasilina mas escrevemos à moda de dona Manuela, por falta de coragem, ou medo ao bolo da palmatória portuguesa.
Esse estudo tão reclamado Amadeu Amaral superiormente o realizou. Seu “Dialeto Caipira” vale por chave de ouro a abrir as portas de um mundo inédito. É o começo da gramaticação de uma língua nova, neta da língua de Horácio.
Ele traz pela mão, honestamente, a caipirinha dialetal paulista e a apresenta ao país.
- Está aqui o pingo d’água arisco que vai ser o diamante de amanhã. Exponho-a aos vossos olhos, nuazinha em pêlo, envergonhada e humilde como a apanhei na roça. Apanhei-a como o O .F. apanha borboletas: sem lhes tocar nas asas para que nenhuma falripa do irisado se perca. Está pura e intacta como se surgisse de um banho matinal no ribeirão.
Estudei-a sob todos os aspectos.
O fonético, enunciando as alterações normais dos fonemas e as modificações isoladas. O lexicológico, dizendo dos elementos lusos, arcaicos na forma ou no sentido, com que se enfeita; dos elementos indígenas que assimilou, dos africanos e das elaborações pessoais – deliciosa criação de fino sabor expressivo. O morfológico, dando a formação das palavras, as maluqueiras teratológicas, as flexões de grau e verbo e o modo todo seu de resolver a questão dos pronomes. O sintático, reunindo fatos relativos ao sujeito, ao pronome como objetivo direto, às conjugações perifrásticas, às orações relativas, às modalidades da negativa e à maneira de circunstanciar o tempo, o espaço e a causa.
Em seguida organizei um vocabulário onde desfio o rosário inteiro de palavras que ela criou, ressuscitou, simbolizou e modificou – ou corrompeu, como querem os moralistas vestidos na pele dos filólogos.
Aqui tendes a minha contribuição. Juro pela fidelidade do esboço – que assim foi que a vi, à língua nova, brincando menineira em terras de S. Paulo. Façam outros o mesmo. Retratem-na com este carinho, ao norte, ao sul, ao centro – honestamente, sem retoques.
Porque Brasilina é volúvel. Traja-se de gaúcha nos pampas, de vaqueira no centro, de seringueira na Amazônia e só a teremos estudada de modo integral, nas graças corporais e na psicologia, quando lhe fotografarmos todas as variantes. Só esses trabalho coletivo nos permitirá a posse do diamante bruto que por aí rola nas mãos calejadas do poviléu. Feito isto, é lapidá-lo na ourivesaria da rima e da prosa e teremos criado a língua nova que no futuro falarão cem ou duzentos milhões de homens.
É isto que nos diz o livrinho modesto de Amadeu Amaral, o Fernão Lopes da gramaticologia brasileira.
Seu “Dialeto Caipira” assanhará as tartarugas filológico-perobas, como obra ímpia que dá honras de cidade à “corrupção”.
Esses carunchos sob forma humana pertencem à fauna cadavérica. Só se sentem à vontade quando a questão é de necropsia. Em se tratando de arrastar a asa a uma rapariga viva, de carne morena e quente, persignam-se como fradalhões hipócritas e gritam fugindo às arrecuas:
- Pecado! Pecado!... (8:77-82)
8. Assim como o português saiu do latim pela corrupção popular desta língua, o brasileiro está saindo do português. O processo formador é o mesmo: corrupção da língua mãe. A cândida ingenuidade dos gramáticos chama “corromper” ao que os biologistas chamam “evoluir”.
Aceitemos o labeu e corrompamos de cabeça erguida o idioma luso, na certeza de estarmos a elaborar uma obra magnífica. Novo ambiente, nova gente, novas coisas, novas necessidades de expressão: nova língua.
É risível o esforço do carrança, curto de idéias e incompreensivo, que deblatera contra esse fenômeno natural e tenta paralisar a nossa elaboração lingüística em nome dum respeito supersticioso pelos velhos tabus portugueses... que corromperam o latim.
A nova língua, filha da lusa, nasceu no dia em que Cabral pisou no Brasil. Não há documentos, mas é provável que o primeiro brasileirismo surgisse exatamente no dia 22 de abril de 1500. E desde então não se passou um dia talvez em que a língua do reino não fosse na colônia infiltrada de vocábulos novos, de formação local, ou modificada na significação dos antigos.
Hoje, após 400 anos de vida, a diferenciação está caracterizada de modo tão acentuado, que um camponês do Minho não compreende nem é compreendido por um jeca de S. Paulo ou um gaúcho do sul.
Quer isto dizer que no povo – e a língua é um produto puramente popular – a cisão já está completa.
Nas classes cultas a diferença é menor, se bem que acentuadíssima, sobretudo na pronúncia e no emprego de palavras novas. Até arcaísmos lusos ressuscitaram cá e são correntes de norte a sul. Um deles foi tomado como brasileirismo: o emprego do pronome pessoal “ele” como complemento direto. Ora, isso é coisa velha, forma anterior ao descobrimento do Brasil. Dizem os escabichadores de antigualhas que é de uso corrente nos cancioneiros, na “Demanda do Graal”, no “Amadis”, etc. E citam em Fernão Lopes muito “viu ela”, “nomeamos ele”, etc. – de Fernão Lopes! Um dos grandes pais da língua lusa.
Não é brasileirismo, pois, essa forma velha. É um lusitanismo ressurreto na colônia.
Hoje, do Amazonas ao Borges, o “ele” e o “ela” desbancaram o “o” e o “a” na linguagem falada, apesar da resistência dos letrados e a resistência da língua escrita. Não nos consta que algum escritor de mérito usasse na prosa ou no verso esse pseudo-brasileirismo, embora falando familiarmente incida bela. Mas dia virá em que se rompa essa barreira, porque as correntes populares são irresistíveis, os gramáticos não são donos da língua, e esta não é uma criação lógica.
Verão, pois, nossos netos um futuro Rui, de tanta autoridade como o atual, abrir uma oração política da mais alta importância com esta forma que inda choca o beletrismo de hoje: O Brasil, senhores, amei ele o mais que pude, servi ele o que me deram as forças, etc.
E verão um futuro Bilac lançar um “ouvir estrelas” assim:

Ontem divisei ela
na janela...

Será isso simplesmente a reabilitação da forma lusa dos pré-clássicos, já vitoriosa na língua falada de hoje.
Riem-me? Não é matéria de riso. É a anotação singela da marcha dum fenômeno.
Ainda nos detém hoje o medo à férula dos gramáticos d’além mar e de seus prepostos no Brasil. Não obstante, a corrente do “ele” cresce dia a dia e acabará expungindo a do “o”.
Além dessas incoercíveis modificações sintáticas, temos outra feição evolutiva operada em larga escala: a adoção de palavras novas por injunções das necessidades ambientes.
A língua é um meio de expressão. Modifica-se sempre no sentido de aumentar o poder da expressão. A variedade de coisas novas que tivemos necessidades de expressar, num mundo novo como o Brasil, forçou e força no povo um surto copiosíssimo de vocábulos. Eles brotam por aí como cogumelos durante a chuva. Lutam entre si. Os fracos, os inúteis, caem, como frutos temporões, bichados antes de maduros. Os bons, os expressivos e necessários, vencem e ficam na língua. A princípio, na língua falada. Depois penetram na chamada literatura regional. Passam dela aos glossários de brasileirismos e entram, por fim, consagrados, no panteon dos dicionários.
A extensão do nosso território favoreceu grandemente o neologismo. Houve além disso a contribuição copiosa do índio e do negro. Há agora a do italiano em São Paulo e a dos alemães no sul. A maioria destas palavras são de absoluta necessidade. Como falar da vida amazônica sem recurso às mil palavras de criação local? Como pintar o Rio Grande sem recorrer ao vocabulário gaúcho? E falar do Rio sem tomar as pitorescas invenções glóticas do cafajeste carioca? Há no português termos que substituam o “encrenca” e seus derivados, de criação catarinense? É a “uruca”, a “caguira”, o “engrossamento”, como enunciar a coisa com palavras do Morais?
Sem coragem ainda de lançarmos o nosso dicionário, vemo-lo já em trabalhos preparatórios, a delinear-se nas obras de B. Rohan, Taunay, Romanguera e tantos outros coletores de regionalismos. Virá a seu tempo. Convencer-nos-emos um dia de que, se saímos de Portugal, nada mais temos com o ex-reino, hoje tumultuosa república. Virá, talvez, muito breve. O dicionário brasileiro já nada em elaboração em várias tentativas que nos chegaram ao conhecimento. E a prova da viabilidade da idéia está no interesse dos editores no assunto.
Em matéria dicionarística vivemos inda hoje na absoluta dependência de Portugal. Temos o que Portugal nos manda, Aulete, Vieira, Candido Figueiredo. Este nos deu a honra insigne de incluir na sua obra uma boa cópia de brasileirismos, para contentar a colônia e fazer bom negócio nela. Os mais são dicionários rigorosamente portugueses.
Quem lê Alberto Rangel, por exemplo, o mais rico bateador de termos regionais da nossa literatura, em muitos pontos não tem meios de lhe compreender o pensamento. Esbarra a cada passo com uma palavra regional coletada por ele, e se recorre aos dicionários fica na mesma.
No próprio Rui Barbosa quantas palavras não existem que o carrança português não nos deu a honra de “endicionariar”?
Isso, porém, não é culpa deles, que fazem léxicos portugueses, para seu uso lá. A culpa é nossa, pois já era tempo de termos publicado o nosso dicionário.
Pensando bem a matéria, temos de empreender a obra nas seguintes bases: eliminar do novo dicionário todas as palavras portuguesas desusadas no Brasil, já arcaísmos, já lusitanismos de moderna criação popular, absolutamente inúteis para as nossas necessidades expressivas. Eliminar todas as palavras coloniais portuguesas que atravancam os dicionários atuais, fazendo-os obesos. Dar, principalmente, a significação que os vocábulos portugueses têm aqui no Brasil, e subsidiariamente a que têm no ex-reino. Introduzir todas as nossas criações lingüísticas, as coletadas pelos glossaristas e as que andam soltas. Fazer, em suma, o dicionário prático de que precisa quem vive nesta terra, que já foi colônia e está custando a se convencer de que não mais o é.
Será, pois, uma obra da grande utilidade e alto alcance, porque consolidará definitivamente cisma operado na velha língua lusa.
Acontece hoje o seguinte: um menino abre o Aulete e procura a palavra “Hein”; e vê lá a pronúncia “ a n- e”. Ri-se, está claro, e chama “ane” ao pobre Aulete.
Outro vai ao C. de Figueiredo em busca da palavra “chopim”, que ele ouve todos os dias aplicada a um passarinho preto que parasita o tico-tico, e por analogia aos maridos de professoras. Não encontra. Mas encontra, por exemplo, “caloqueio”, pássaro africano. Temos de abrir a gaiola ao caloqueiro e pôr em seu lugar o chopim. Está aquele estafermo a empatar um poleiro precioso.
Dirão: seria melhor conservar todas as palavras portuguesas e incluir todas as nossas. Isso seria fazer uma almanjarra ineditável, ou caríssima, ao passo que o peneiramento acima proposto aliviaria a obra das múmias inúteis que se esmiram ali, dos exotismos d’Índia e Angola com que nada temos a ver, daria livro maneiro, cômodo, num volume só, e por preço ao alcance do povo.
Acoimam o nosso pobre povo de ignorante, mas não lhe dão sequer um dicionário da língua, bom e barato! Os sucedâneos portugueses que lhe indicam, sobre lhe não satisfazerem as exigências, custam os olhos da cara, oitenta, cem mil réis.
Além desta novidade o novo dicionário tem que dar o máximo rigor às definições, aproximando-se dos grandes dicionários estrangeiros, Webster à frente. Fugirá, assim às sandices que Aulete e Figueiredo incriminaram aos anteriores e em que incidiram, se bem que em menor escala.
Abro ao acaso este último e leio: “Desarvorado: - que fugiu desordenadamente”. Logo: navio desarvorado – navio que foge desordenadamente.
E são os papões da língua. Dão-nos em cima de palmatória e ensinam-nos o que se não deve dizer, esquecidos de que não se deve dizer, sobretudo, asneiras.
Muita coisa se projeta para a comemoração da independência. Se for levado a termo o Dicionário Brasileiro, nenhuma comemoração será mais significativa. Valerá por um esplendido monumento e por um grande passo na “realização” duma independência “proclamada” vai fazer cem anos. (8:101-107)
9. Esta minha saída serviu para me revelar uma coisa: o que é a pátria. Pátria é a língua, nada mais. O sair fora da língua nos deixa aleijados – “despatriados” – expatriados. Viver é sobretudo conversar, e como conversar em pátria estranha, isto é, em língua estranha? A grande coisa que há no Brasil para os brasileiros não é o Duque de Caxias, nem o general Dutra – é a língua.
Afastado da língua, um sujeito como eu, que nunca fez outra coisa senão espojar-se na língua, sente-se como mosca à qual os meninos arrancam as asas e as perninhas. Fica vivo, mas... toco.
Volto para aí e não farei nada até morrer senão conversar. Aqui não converso – falo apenas, num misto de duas línguas que todos entendem por um terço, e a mim me dá a desagradável sensação de estar totalmente imbecilizado. Basta a imbecilidade natural com que nasci; dispenso a suplementar. (12:74)
10. Estava eu a ouvir a preleção de Mr. Slang sobre Joseph Henry, o inventor do eletromagneto, quando duas sibilas pararam bem à minha frente – e toda a minha atenção foi pouca para lhes pescar frases do diálogo.
- I’m missing Bob...
- Ain’t it sweet?
Por que foi ela usar em presença de Mr. Slang de semelhante barbarismo? Meu inglês, até ali despercebido da presença das misses, deu por elas afinal ao toque daquele ain’t. Fez a cara de pontada no coração que cada inglês não degenerado faz quando zurzido por uma dessas liberdades que os americanos tomam com a língua de Macaulay.
- Ain’t it sweet! Repetiu com expressão nevrálgica. Estou com o dia estragado, meu caro. Vamo-nos à cafetíria tomar uma dose de Bromo Saltzer.
Custou arrancar-me dali. Tanta coisa a ver e as numerosas inscrições a ler, de Carlyle e Cícero e Bacon e Pope e Virgílio. E o diálogo das sibilas a ouvir... Era caturrice de Mr. Slang aquela ojeriza, e tanto me revoltou que mentalmente assumi o compromisso de nunca mais, enquanto estivesse na América, dizer I am not e sim Ain’t, como as sibilas. Se são sibilas e donas da terra, e se em seus lábios soa tão bem o Ain’t, viva o Ain’t! Ficasse a língua entregue aos caturras e jamais evoluiria.
Fui para a cafetíria já sem vontade de tomar coisa nenhuma. Vontade tinha apenas duma coisa – de que me viesse oportunidade para, com a maior naturalidade do mundo, aplicar durante a conversa pelo menos uma dúzia de Ain’t na carne viva do meu inglês, como sinapismos.
- Ainda não pude suportar esta liberdade dos americanos para com a língua inglesa, disse-me ele de caminho. Corrompem-na barbaramente.
- Corromper, Mr. Slang, não será um sinônimo colérico de evoluir?
Talvez, mas não é coisa que meus nervos suportem. Já cacei tigres na Índia e no Uganda. Não mexem com os meus nervos. O Ain’t mexe.
- Mas é esse o meio duma língua desenvolver-se! Não fosse a audácia inconsciente dos ignorantes, e estaríamos ainda hoje, aqui no Novo Mundo, a falar o inglês cicerônico do Dr. Johnson.
- E que lindo seria!...
- Lindo, não nego, mas insuficiente para as necessidades da expressão moderna. O caso daquele inglês que ouviu a pergunta: “Can a canner can a can that can’t be canned by a canner?” é típico. A pergunta seria entendida por todos os americanos da América, mas o pobre Shakespeare ver-se-ia tonto para decifrar o enigma. As coisas novas que enchem hoje a América e com as quais nunca sonhou o Dr. Johnson, forçam a variação da língua.
- Sei disso, mas desejaria que essas variações respeitassem normas estéticas.
- Culpa têm os ingleses que fizeram da sua língua uma língua livre cambista. A entrada de palavras na língua inglesa é franca. As palavras chegam de toda parte e estabelecem domicílio no inglês sem que a polícia glótica as marque com qualquer sinal indicativo de que são de fora. Gosto disso, porque sou duma terra terrivelmente protecionista em matéria de língua. Palavra exótica que entra no Brasil tem de ficar anos e anos marcada com grifo, ou entalada entre aspas, antes de ser naturalizada. Até hoje, apesar de residir no país há longuíssimos anos, a palavra elite, por exemplo, ainda aparece marcada – elite ou “elite”. Já vai aparecendo despida dessa pecha aqui e ali; mas para que a elimine de todo, quantos anos de uso diário ela ainda necessita!...
- Talvez o mal de que nós ingleses nos ressentimos venha da rapidez com que a evolução da língua se opera aqui. Inda não nos pudemos conformar com a mania da América de fazer num ano o que sempre pediu vinte. Isso não dá tempo às células cerebrais de se adaptarem – e esquecerem. O mundo ri-se de termos na Inglaterra a palavra “avoirdupois”, que não passa duma frase francesa – “avoir du pois”, ter peso, pronunciada à inglesa. Também acho horrível. Mas pior é o verbo americano To vamose...
- To vamose? Inquiri, de rugas na testa. Era novidade para mim tal verbo.
- Sim, prosseguiu Mr. Slang. Esse verbo é corriqueiro nas zonas fronteiriças com o México e foi formado duma pessoa do verbo Ir – vamos. Os americanos das fronteiras, que não conheciam o espanhol, observaram que cada vez que num magote de mexicanos entrados em território americano soava o grito de – Vamos! Imediatamente todos davam rédeas aos cavalos e lá se iam embora para o lado mexicano. Em vista disso associaram ao som “vamos” a idéia de “por-se dali pata fora”, e quando querem “tocar” alguém, usam do verbo “vamos” já americanizado nesse estranho verbo To vamose, cuja significação não é a de um convite para seguir junto, mas duma intimidação para por-se ao fresco. To vamose, pois, quer dizer sair, puxar dali para fora – ou justamente o contrário do “vamos” espanhol...
- Realmente, é curioso, murmurei, desatento, com o olho na flecha que indicava a direção da cafetíria.. a fome é um fato.
Sobre esta extrema receptividade da língua inglesa para com palavras de todas as outras línguas Mr. Slang ainda falou por algum tempo, citando “Valorization”, palavra que figura no dicionário Webster com a definição de “act or process of attempting to give na arbitrary market value or price to a commodity by governamental interference, as by maintaining a purchasing fund, making loans to producers to enable them to hold their products, etc.; - used chiefly of such action by Brazil”.
- Definição perfeita, como vê, concluiu o meu sábio e sempre alerta cicerone. No entanto, duvido que haja em qualquer dicionário português ou brasileiro a consignação dessa palavra com o sentido criado no Brasil. (15:57-60)
11. – No começo era Thor, depois ficou Thur, por isso no começo dizia-se Thorsday. As palavras de todas as língua vão mudando sempre. Tomemos as palavras “nariz” e “Pedro”. No tempo dos romanos, nariz era nasus e Pedro era Petrus. Mudaram ou foram mudando lentamente. No futuro é possível que em vez de nariz se diga naiz. Um dia havemos de conversar sobre esta contínua mudança das palavras, que é assunto muito interessante. (22:134)
12. – E assim se foi formando, e se vai formando, a língua. Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
- Que vem a ser clássicos? Perguntou a menina.
- Os entendidos chamaram clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antonio Vieira, Frei Luís de Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros. Para os Carrancas, quem não escreve como eles está errado.
Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer uma coisa aqui dizem outra. Borracho, por exemplo, quer dizer bêbado; lá quer dizer filhote de pombo – vejam que diferença! Arrear, aqui é selar um animal; lá, é enfeitar, adornar.
- Então lá há moças bem arreadas?- perguntou Emília.
- Sim – respondeu a velha. – Uma dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, Moço significa jovem; lá, significa serviçal, criado.
Também no modo de pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui, todos dizem Peito; lá, todos dizem Paito, embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz Tenho e lá se diz Tanho. Aqui se diz Verão; lá se diz V’rão.
- Também eles dize m por lá Vatata, Vacalhau, Baça, Vesouro – lembrou Pedrinho.
- Sim, o povo de lá troca muito o V pelo B e vice-versa.
- Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais direito do que na cidade velha concluiu Narizinho.
- Por quê? Ambas têm o direito de falar como quiserem, e portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra – as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.
A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha. Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver. (24:105-106)
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Ver: ESCREVER 5 ( 2:51-52 )
ESCRITORES: MACHADO DE ASSIS 3 ( 7:333-338 )
FORMA 1 ( 1:222-223 )
GRAMÁTICA 1 ( 2:39 )
LITERATURA BRASILEIRA 1 (10:3-9 )
ORTOGRAFIA 1 ( 1:329 )
PONTUAÇÃO (1:144-145)
ROMANCE NO BRASIL (5:47-51)
VOCÁBULOS 1 ( 1:239-241 )